Sandra Oliveira e Silva, doutorada pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto, onde é Professora auxiliar, especializada em Direito Penal e Direito Criminal, acaba de cumprir o primeiro de três anos de mandato como presidente da Comissão de Instrutores da Liga Portugal. Com um raciocínio ágil e bem estruturado, a jurista responsável pelo ‘Ministério Público’ da Liga, não só faz, nas páginas que se seguem, o balanço a uma nova experiência, que considera «gratificante», como nos dá a visão que tem do sistema que regula a Justiça no futebol português, deixando algumas sugestões para a melhoria do seu funcionamento, nomeadamente no que respeita às instâncias de recurso. Numa altura em que muito se fala em transparência, Sandra Oliveira e Silva não se furtou a qualquer questão e contribuiu, muito positivamente, para um debate de ideias sério e profundo, que já peca por tardio... Como é que uma Doutorada em Direito, penalista e criminologista, chegou ao mundo do futebol?— A minha área de especialidade é útil no Direito disciplinar desportivo, que é sancionatório e punitivo. Os princípios gerais do Processo Penal são aplicáveis, em alguns casos porque consagram soluções que estão previstas no Código de Processo Penal, noutros, por aplicação subsidiária, sempre que existe uma lacuna. É neste contexto que consigo entender que um Professor universitário de Direito Penal possa dirigir a Comissão de Instrutores da Liga Portugal.— Que razões específicas terão levado a que a primeira escolha da Liga recaísse em si?— Sinceramente, não sei. Não conhecia ninguém deste universo.— Mas gosta de futebol, ia regularmente aos estádios?— Confesso que já gostei mais de futebol, vejo jogos de vez em quando, sobretudo na televisão, aliás o último que vi ao vivo foi a final da Taça da Liga e gostei muito de estar lá.— Que balanço faz deste primeiro ano à frente da Comissão de Instrutores da Liga?— Olhe, aceitei este desafio que, como já disse, foi para mim uma surpresa, por me parecer extremamente estimulante, apesar de ter algum receio do mediatismo, e também por ser muito diferente da atividade universitária. No fundo senti aquele receio normal quando enfrentamos o desconhecido. Mas, passado um ano sobre a minha tomada de posse, o balanço é de tal forma positivo que esse receio inicial se dissipou, e a impressão consolidada que tenho é de que temos feito um bom trabalho, modéstia à parte terão escolhido bem, e eu tive muita sorte com a equipa que me calhou.— Qual é o modelo de funcionamento da Comissão de Instrutores da Liga?— Temos por função, no processo disciplinar comum, investigar os factos participados – a instauração cabe ao Conselho de Disciplina da FPF e a investigação cabe-nos a nós...— Quantas pessoas trabalham consigo na Comissão de Instrutores da Liga?— Além de mim, três instrutores.— Em que regime trabalham, de exclusividade?— O regime é de tempo integral. Embora os instrutores sejam advogados e não estejam impedidos de exercer a sua advocacia, dedicam um horário de trabalho integral à Liga, numa média de oito horas por dia.— Está satisfeita com o nível de prontidão da resposta que têm dado aos casos que vos são submetidos?— O modelo vigente foi instituído na ocasião em que tomei posse, e veio tornar possível o tempo de resposta que agora temos. Conseguimos evitar a dispersão e pulverização da atenção dos instrutores, porque têm um horário de trabalho que os obriga a concentrarem-se nos processos, e assegura que possam ser cumpridos os prazos. — Quer concretizar?— O prazo médio de instrução na época de 2021/22, antes da nossa chegada, era de 88 dias. Ou seja, desde que o processo chegava, até que saía, passavam, em média, 88 dias. Em 2022/23 este prazo passou para 23 dias. Neste momento, o prazo médio de instrução vai nos 12 dias. Tratou-se de uma redução significativa, de 2021/22 para 2022/23 [74%], e continuamos a encurtar esse prazo. — E no que respeita a processos pendentes?— A época 2021/22 terminou com 56 processos pendentes; em 2022/23, a temporada acabou com quatro processos pendentes. Ao longo deste período de um ano que levo no cargo, conseguimos reduzir por duas vezes as pendências a zero, o que é quase impossível manter....— É correto dizer-se que, pelas especificidades que encerra, no futebol, se a Justiça não for célere, não é Justiça, mais até do que noutras áreas da sociedade?— A celeridade é importante em qualquer área do Direito, particularmente no Direito sancionatório ou punitivo, até por força do artigo 32, número 2 da Constituição da República, que liga a presunção da inocência a exigências de celeridade. Mas na Justiça desportiva, como disse e muito bem, essa exigência é também feita pela verdade da competição desportiva, porque se as sanções não são aplicadas e executadas antes do jogo seguinte, isso pode condicionar o próprio desfecho. — Estava a lembrar-me, em termos de Justiça desportiva, do caso de Coentrão, que foi sancionado já depois de ter terminado a carreira...— Compreendo, mas a notícia que tenho para dar é que essa situação pertence ao passado...— Qual é o nível de contestação pública às decisões tomadas pela Comissão de Instrutores da Liga?— Não posso dizer que seja nula, porque não há ninguém isento de críticas, mas, francamente, não tenho dado conta de contestação à nossa atividade. Temos a função de investigação, a fase que no Processo Penal é da competência do Ministério Público, e é isso que temos feito encurtando o tempo de resposta...— Saindo do âmbito específico da Comissão de Instrutores, e comparando a Justiça do futebol em Portugal com outros países, nomeadamente Inglaterra, França ou Alemanha, ou organizações como a UEFA, verifica-se uma lentidão significativa. Onde é que o nosso sistema falha?O mal está na multiplicação de instâncias de decisão. Essas entropias, embora se verifiquem num número muito reduzido de casos, adquirem uma projeção maior e acabam por contaminar a imagem da Justiça Desportiva, onde 97% das infrações disciplinares são apreciadas em processo sumário, tramitado de forma absolutamente célere, que é da estrita competência do Conselho de Disciplina. Dentro da esfera da Justiça desportiva interna, no processo sumário, a celeridade é absoluta. Nos casos em que o processo disciplinar segue a forma comum, tendo em conta a complexidade dos casos, os prazos de decisão, e as diversas fases processuais, torna-se mais moroso. E depois há recurso das decisões proferidas pelo Conselho de Disciplina, para instâncias situadas fora da Justiça desportiva interna. Esses recursos, desde que não se trate de uma questão estritamente desportiva, são dirigidos ao Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), e essa não é a última instância, porque do TAD ainda há recurso para o Tribunal Central Administrativo, e ainda pode haver recurso para o Supremo Tribunal Administrativo. — Há alguma racionalidade neste processo labiríntico?— Estas múltiplas camadas de jurisdição não se compreendem, e não são necessárias, sequer, à luz de uma tutela dos direitos fundamentais do arguido. E se fizermos o paralelismo com o Direito Penal, do qual eu venho, se alguém for condenado, em primeira instância, numa pena de prisão não superior a cinco anos, pode recorrer para o Tribunal da Relação, mas não há recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Se no Processo Penal, alguém que é acusado da prática do crime de roubo e condenado a quatro anos de prisão, só dispõe de um grau de recurso, porque é que um agente desportivo, que é sancionado com uma suspensão, dispõe de quatro graus de recurso e cinco instâncias de decisão? Isto é uma perversão que não se justifica e deverá ser objeto da atenção do legislador.— É possível, do ponto de vista técnico-jurídico, reduzir as instâncias de recurso no futebol, sem ferir a Constituição?— O problema está no TAD. Quando foi criado, o TAD foi pensado para ser uma última instância, de onde não haveria recurso. A questão é que, em sede de fiscalização preventiva da constitucionalidade, o Tribunal Constitucional entendeu que este modelo violava a Constituição, e que não se podia proibir o arguido de recorrer para os Tribunais do Estado. O que fazer, então? A solução seria, em vez de termos o TAD como Tribunal arbitral, criar um Tribunal especializado em matéria desportiva, dentro da orgânica dos Tribunais do Estado. Essa seria uma solução, que passaria por uma reconversão do modelo: continuaria a ser um Tribunal especializado, mas inserido na orgânica dos Tribunais Administrativos, o que limitaria os recursos das decisões proferidas. Sendo um Tribunal do Estado, o problema da constitucionalidade estava resolvido. — Qual seria para si a melhor arquitetura para a Justiça do futebol, em Portugal? — A minha proposta seria no sentido de converter o TAD numa instância especializada inserida na orgânica dos Tribunais do Estado.— E mantinha a Comissão de Instrutores da Liga e os Conselhos de Disciplina e Justiça da FPF, este último um pouco esvaziado...— O Conselho de Justiça tem competência para decidir em sede de recurso quando esteja em causa uma questão estritamente desportiva. Quando se trata de decidir sobre questões que têm a ver com as leis do jogo, as decisões do CD só podem ser objeto de recurso para o CJ, e não pode recorrer-se daí para um âmbito exterior à Justiça desportiva.— Mas o caso Palhinha foi um cartão amarelo que acabou no Tribunal Administrativo...— Pois, mas aí há que ter em conta qual é o entendimento de «estritamente desportivo»...— Em relação à Comissão de Instrutores e ao Conselho de Disciplina, cortei-lhe a palavra...— Nesse âmbito, a competência decisória da Comissão de Instrutores e a competência decisória do Conselho de Disciplina da FPF é uma exigência do princípio da acusação e da garantia de imparcialidade da decisão. Porque se quem decidir fizer a investigação não terá o distanciamento necessário, e a sua decisão poderá ser inquinada por pré-juízos que possa ter desenvolvido no momento da recolha da prova. — As penas, em Portugal, no futebol, quando comparadas com outras Ligas ou com a UEFA, são muito leves. Isto não passa a ideia de que o crime compensa?— Não creio que essa visão seja correta. Em primeiro lugar, nas sanções desportivas, mais importante que a severidade é a celeridade. Saber que a sanção é certa e que a cada infração corresponde uma sanção aplicada e executada em tempo útil, tem uma eficácia dissuasora maior do que a severidade das sanções. Mas também não concordo que as sanções não sejam suficientemente pesadas. O quadro sancionatório parece-me equilibrado...— Porém, vemos jogadores e treinadores que na UEFA, onde as sanções são ‘a doer’, portam-se bem; nas competições nacionais, onde as sanções são suaves, pintam a manta...— Pois, mas o Regulamento Disciplinar também está em revisão, e para determinados comportamentos essas correções estarão a ser feitas. Dentro das molduras existentes, as decisões sancionatórias parecem-me ajustadas. Mas o nosso papel, na CI, é apenas acusar ou arquivar.