Ilicic é a prova viva da força da saúde mental
955 dias depois, Ilicic voltou a disputar uma partida competitiva pela Eslovénia (IMAGO)

Ilicic é a prova viva da força da saúde mental

Craque da Atalanta passou por fase má que quase lhe terminava a carreira, mas graças aos esforços de recuperação, voltou a disputar um jogo pela seleção da Eslovénia, 955 dias depois

O número de desportistas que tem vindo, nos últimos tempos, a assumir a ajuda de psicólogos e terapeutas no seu dia a dia, da mesma maneira que contam com fisioterapeutas ou preparadores físicos, tem vindo a crescer. Richarlison, por exemplo, assumiu que, não fosse a ajuda psicológica que teve, teria mesmo ponderado acabar a carreira. «Já não gostava de futebol», admitiu mesmo o brasileiro. Michael Phelps, porventura o melhor nadador de todos os tempos, assumiu já ter tido pensamentos suicidas. Simone Biles, ginasta americana, fez pausa na carreira devido a questões de saúde mental, tal como a tenista Naomi Osaka.

Cada vez mais, a saúde mental deixa de ser tabu. E bem. Até o estereótipo - sobretudo no desporto masculino - que afirma que os problemas mentais não passam de coisas da cabeça começa, aos poucos, a cair.

Todos nós já teremos ouvido a frase «isso é psicológico» para justificar alguma barreira mental para qualquer coisa que temos de fazer, mas, por uma razão ou outra, não conseguimos. Apesar de os problemas de saúde mental estarem a ser, cada vez mais, não só discutidos, mas valorizados, continua a haver, na sociedade, um distanciamento quando é feita a comparação com lesões físicas. Afinal de contas, é mais fácil mostrar a alguém que um osso está partido do que uma depressão. Há, porém, forma de mostrar esse tipo de problemas. Não necessariamente da lesão, mas do inegável processo de recuperação que serve de grua para quem está no fundo do poço. No futebol, também há exemplos. O mais concreto? Josip Ilicic.

Josip Ilicic, jogador da Eslovénia (IMAGO)

Dizer que a vida de Ilicic foi difícil seria um eufemismo. O seu pai morreu na guerra quando tinha apenas sete meses e, passado uns anos, teve de fugir da sua terra natal, a Bósnia, para a Eslovénia, devido ao conflito armado que rebentou no seu país. As terras eslovenas foram a sua casa desde então e, por isso, resolveu representar esse país.

Passado vários anos, jogou na Fiorentina e, depois, mudou-se para a Atalanta, onde atingiu o ponto máximo da sua carreira. Porém, até lá chegar, teve de passar por dois momentos que muito o afetaram.

A linfadenite e a morte de Astori

A 4 de março de 2018, o mundo do futebol acordou em choque. Davide Astori, capitão da Fiorentina, morreu durante a noite num hotel antes do jogo do emblema viola com a Udinese. Astori havia sido colega de Ilicic e esse momento marcou-o, pouco tempo antes de sofrer de uma linfadenite que o hospitalizou.

Ilicic celebra o golo com Astori e Borja Valero (IMAGO)

Essa doença, uma infeção linfática, causou impacto no avançado esloveno. «O que tinha acontecido com Astori estava na minha cabeça. Não conseguia dormir por causa do que aconteceu. Estava com medo. Pensei 'e se adormeço e já não acordo amanhã?' Com esta doença, há pessoas que ficam em coma, com outras, a infeção espalha-se. Quando se pensa nestas coisas, começa-se a olhar para lá do futebol», admitiu o avançado, em entrevista ao Corriere dello Sport.

Esta mudança de mentalidade pode ter ajudado a levar à melhor temporada da sua carreira: a 2019/20. Somou 21 golos pelo clube italiano, que ajudou a levar aos quartos de final da Liga dos Campeões com uma sensacional exibição em Valência: vitória por 4-3, com quatro golos de... Ilicic.

A COVID-19 e a recaída

Olhando para as bancadas, é possível ver que, na altura desta partida, tudo não estava bem. A pandemia de COVID-19 apareceu na Europa no início de 2020 e a zona da Lombardia, no norte de Itália, foi das mais afetadas. Bérgamo, no pico de infeção, chegou a ter 40 mortes por dia devido ao coronavírus.

A pandemia não teve só efeitos físicos, mas também mentais. E Ilicic, que ficou infetado, ouvia diariamente as sirenes que lhe relembravam os tempos da guerra e reavivaram traumas, vivia com o fantasma da doença que o internou e estava isolado por viver sozinho num país diferente do seu, caiu em profunda depressão. Quem o diz é Alejandro Gómez, seu colega de equipa. «Há um momento em que a cabeça explode», disse, em entrevista. A Serie A recomeçou em junho, Ilicic só jogou cinco partidas e, frente ao Inter, as camisolas dos jogadores com o nome do esloveno contavam que algo se passava.

Anos depois, Gian Piero Gasperini, treinador da Atalanta, explicou. «Antes do jogo com o PSG [quartos de final da Liga dos Campeões, em Lisboa], fui ter com ele ao hospital. Tinha perdido uns 10 ou 12 quilos. Peguei nele e disse 'anda comigo, Josip...'», afirmou o técnico, em lágrimas. O avançado já não jogou nessa temporada, mas esse problema viria a ser ultrapassado.

Em 2022, contudo, teve uma recaída. «Já tivemos muitos momentos felizes juntos. Ele é muito positivo, mas não sabemos o que vai na nossa cabeça. É uma selva. Espero que volte a encontrar alguma alegria em jogar futebol», afirmou, de novo, Gasperini, que assumiu que não sabia quando - ou se - voltaria a contar com Ilicic. E não viria mesmo. O avançado regressou à Eslovénia para jogar pelo Maribor.

Esta mudança para mais perto da família parece ter tido um efeito muito positivo na saúde mental do jogador. Depois de uma época de ambientação, sobretudo física, aos 36 anos, Ilicic apontou 10 golos e assistiu outros 12 em pouco mais de 2000 minutos, divididos por 39 partidas.

Ilicic reencontrou a felicidade em campo no Maribor (IMAGO)

Matjaz Kek, tantos anos depois

A forma do avançado, que se aproxima do seu 37.º aniversário, não passou despercebida a Matjaz Kek, selecionador esloveno. Na primeira passagem que teve na seleção, Kek deu, em 2011, a estreia a Ilicic e, agora, colocou-o na lista de 26 para o Euro 2024. Esta terça-feira, frente à Inglaterra, voltou a entrar em campo com a camisola eslovena. Foi a primeira vez que o fez num jogo competitivo em 955 dias, ou seja, quase três anos.

No final da partida, o próprio admitiu que Declan Rice (ainda que o tenha descrito apenas como «um médio do Arsenal que todos conhecem bem») o elogiou. «Disse que me respeita muito. Fico feliz. A minha história é muito conhecida.»

Ilicic disputa bola com Rice (IMAGO)

Foi, de facto, uma história com final feliz a de Josip Ilicic, que permite servir de exemplo do processo de recuperação. No pico da sua carreira, a saúde mental foi derrubada e isso tirou-lhe as capacidades físicas por que se destacava. Apesar disso, da mesma maneira que se cai ao chão, qualquer um se pode reerguer. Quem melhor para o dizer que Josip Ilicic?

A minha história é a prova que, na vida, nunca devemos desistir. Tal como podemos perder tudo, por outro lado, a vida dá-nos tanto. É preciso encontrar uma maneira de aproveitar a vida outra vez, de ser feliz.

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