‘Glazers out’? Nem a dívida trava protesto do FC United
Broadhurst Park, estádio do FC United of Manchester (Foto: Lewis McKenna/FC United)

‘Glazers out’? Nem a dívida trava protesto do FC United

INTERNACIONAL20.12.202300:27

Fundado há 18 anos por adeptos do Manchester United, vive momento financeiro difícil devido ao peso da manutenção do estádio; Direção não teme saída dos donos norte-americanos de Old Trafford; acordo municipal dá garantias

MANCHESTER — Chegamos a Moston, no nordeste da cidade, e Broadhurst Park apresenta-se discreto no meio da escuridão, com um tímido vermelho a contornar o topo e o nome do clube destacado a branco: FC United of Manchester. Um clube-protesto há 18 anos. Fundado por adeptos, gerido por adeptos e virado para a comunidade.

Broadhurst Park, estádio do FC United of Manchester (Foto: Luís Mateus)

Nos sintéticos à volta, crianças aprendem os primeiros toques na bola, antes de os jogadores, semiprofissionais, chegarem para o treino. São 18 horas. O nosso cicerone, Tim Browning, responsável pela comunicação do clube, recebe-nos pouco depois, sorridente, e faz-nos a visita guiada. Primeiro, os balneários, com dois grandes placares, um deles com as palavras que os adeptos mais cantam desde as bancadas:

This is our club, belongs to you and me
We're United, United FC
We may never go home
But we'll never feel down
Now we've built our own ground, now we've built our own ground

Este é o nosso clube, pertence-te a ti e a mim
Somos o United, o United FC
Podemos nunca ir para casa
Mas nunca nos sentiremos em baixo
Agora construímos o nosso próprio estádio, agora construímos o nosso próprio estádio

Balneário do Broadhurst Park, estádio do FC United of Manchester (Foto: Luís Mateus)

E um outro, bem ilustrativo, a destacar o papel que treinador e jogadores têm no jogo, e que nem precisamos de traduzir: 

Balneário do Broadhurst Park, estádio do FC United of Manchester (Foto: Luís Mateus)

Nas paredes pintadas de vermelho, branco e preto a pedido do técnico Neil Reynolds, pontuam inúmeras fotografias de momentos marcantes da curta vida do emblema e várias camisolas, uma delas autografada por todos os jogadores da equipa B do Benfica que participaram no jogo de inauguração, a 29 de maio de 2015. Diogo Gonçalves marcou então o golo do triunfo por 1-0. 

Tim lembra-nos então: «Diogo Gonçalves deve ser dos poucos jogadores que marcaram aos dois United.» Não andará nada longe da razão.

Broadhurst Park, estádio do FC United of Manchester (Foto: Luís Mateus)

Na loja, entre os artigos oficiais, encontra-se a camisola principal com os nomes em pano de fundo de todos os sócios que a patrocinam — o emblema rejeita sponsors comerciais — e uma outra comemorativa da maior conquista do clube, que milita no sétimo escalão inglês, o Fénix Trophy de 2023, competição para equipas non league, frente aos italianos do Brera FC, no Giuseppe Meazza, em Milão. Um título europeu!

T-shirt comemorativa da conquista do Fénix Trophy pelo FC United (Foto: Luís Mateus)

No final do túnel está um relvado às escuras. «Não podemos ligar as luzes, é muito dispendioso», explica Tim Browning, antes de continuar: «É irónico que tenhamos deixado o Manchester United na sequência da dívida criada pelos Glazers, entre outras coisas, e agora estejamos estrangulados pela nossa própria despesa. O estádio foi construído com o dinheiro dos adeptos, o que é fantástico, mas a manutenção é muito cara e não o conseguimos encher. Temos uma lotação de 4.400 lugares e, na maior parte das vezes, só trazemos metade da mesma.» 

Pormenor da camisola do FC United, com o nome de todos os sócios que a patrocinam (Foto: Luís Mateus)

Crescer com o apoio da comunidade

Ainda somos um clube de protesto, mas é um protesto muito mais alargado

Warren Heppolette está na Direção há dois anos e acredita que é possível crescer, mesmo com tantas dificuldades financeiras: «Estamos a negociar a nossa dívida com a cidade para pagá-la, com juros mais baixos, estendendo-a por vários anos, como se fosse uma hipoteca, e acreditamos que podemos gerar receita ao cativar jogadores e agentes para utilizarem o estádio para anúncios, e a comunidade para realizarem connosco os seus encontros familiares e as festas. Ainda há pouco tivemos aqui o Jack Grealish. No passado, também Erling Haaland e Raheem Sterling gravaram aqui alguns spots, porque o estádio tem essa capacidade. Além disso, temos de começar a criar laços ainda mais fortes com a comunidade, para que nos vejam como um sítio em que podem fazer desporto e tragam os seus filhos, e assim alargar a nossa base de adeptos, que está naturalmente envelhecida. Isso implica uma maior ligação às escolas e aos colégios também.»

Campos sintéticos do Broadhurst Park, estádio do FC United of Manchester (Foto: Luís Mateus)

O objetivo é continuar a progredir na pirâmide do futebol inglês, o que está longe de ser fácil: «Estamos numa liga em que das 22 equipas seremos das últimas cinco da tabela em termos de orçamento. E algumas fazem um investimento três ou quatro vezes superior. Não serão completamente profissionais, mas têm jogadores que já o foram. Será sempre bastante duro para nós conseguirmos competir nesta liga com estas diferenças, mas mesmo assim a perspetiva é que num período entre dois a cinco anos consigamos ascender à National League North. Por isso, é muito importante gerar receita para além do que fazemos em campo para podermos ser mais competitivos. Se o conseguirmos, se conseguirmos a promoção, teremos de pensar em ser 50-50 profissionais e ter um treinador a tempo inteiro para aí estabilizarmos.»

Warren Heppolette (Foto: Luís Mateus)

O dirigente acredita o clube resistirá aconteça o que acontecer em Old Trafford. «Perder adeptos para o Manchester United? Não acredito. A nossa base de apoio é sólida há 18 anos e não é a primeira vez que se diz que os Glazer vão deixar o clube. As pessoas já não vêm ver os nossos jogos por essa razão, nós já fizemos a nossa escolha. O nosso futuro e a nossa base de apoio tem hoje muito mais a ver com Moston e com o norte de Manchester do que com o Manchester United. Os nossos adeptos estão aqui há muito tempo e investiram tanto neste clube para que agora desertem para Old Trafford. Mesmo que todos nós gostássemos de ver os Glazer pelas costas», lembra.

Warren considera o FC United «ainda um clube de protesto, mas de um protesto mais alargado». O responsável lembra que mesmo em 2005, os adeptos não se reviam não só nos Glazer «mas no que eles representavam, que era revolvante» e que se enquadrava num «cenário de um futebol cada vez mais caro, mais distante dos adeptos, em que os horários e as transmissões eram organizados no sentido de estragar os planos de quem queria estar no estádio». «Todo esse negócio da comercialização, propriedade e expansão do futebol moderno, em que os sócios eram afastados das decisões, era uma relevante parte do nosso protesto», explica.

Uma última questão. Estarão os dirigentes arrependidos de terem construído um bom estádio cedo demais. Too much, too soon? «Podemos vê-lo de duas formas. Por um lado, endividámos o clube ao construirmos um estádio maior do que as nossas necessidades, por outro é uma infraestrutura que nos permite cumprir os nossos objetivos. Se não o tivéssemos teríamos outro tipo de problemas.»

«Futebol tinha perdido a sua alma»

Neil Reynolds treina o FC United há cinco anos, altura em que foi seduzido por um projeto muito especial. «Os Glazer tinham chegado e os adeptos estavam a ser forçados a vender ações. O futebol tinha perdido a alma. Para mim, não valia a pena vir para cá se não tivesse noção porque o clube existia, e apaixonei-me em dois dias. Lembro-me do primeiro jogo no banco numa terça à noite e o estádio estava cheio, com os adeptos a cantarem sobre as razões porque existíamos. Pensei logo ‘Isto é único!’ Hoje, não sou só o treinador, sou adepto e sou um dos donos. Se o meu trabalho acabar amanhã, porque os resultados são o que são, vou continuar a ser adepto e sócio. Conquistou-me. E ainda nos torna mais esfomeados ao sábado.» No que diz respeito ao futuro, o técnico acredita «nos play-off» e que, na próxima época, poderão lutar pela subida, enquanto continuam a tentar «alargar a base de adeptos». 

Reynolds abriu a porta do balneário a A BOLA para a palestra antes do treino da passada quarta-feira, em que se preparou taticamente o encontro com o Worksop Town, que acabaria por dar em goleada sofrida (0-4) depois de algumas oportunidades perdidas e várias transições consentidas ao ficar atrás bem cedo no resultado diante de um clube com um orçamento bem superior e candidato à subida. Nas palavras do gaffer não faltou um agradecimento pela refeição dessa noite.

O treinador Neil Reynolds (à esquerda) (Foto: Lewis McKenna/FC United)

Já o capitão Charlie Ennis cumpriu já 160 jogos pelo emblema. O médio e adepto do Manchester United fala da honra de jogar «por um símbolo da cidade», que tem «o mediatismo, o estádio e até o apoio de um clube profissional». O potencial futuro treinador do clube — já vai trabalhando em conjunto com a atual equipa técnica no dia a dia — lembra: «Todos os jogadores têm um cântico. O meu é ‘Ennis is the one’. É uma multidão barulhenta, são os adeptos die hard do Man. United. É ótimo, as famílias vêm e adoram. Dão-nos memórias inesquecíveis.»

Charlie Ennis, capitão do FC United (Foto: Luís Mateus)