Neste episódio, a aventura de José Fernando Tavares, um português que chegou a Moçambique em 2012, quis fugir de volta a Portugal mas, graças ao futebol, moçambicano se tornou, tem uma grande empresa e é dono de um clube; os recados de Rui Almeida aos internacionais angolanos que andam a invocar lesões e jogam nos seus clubes; mais uma obra de arte de Yuri da Cunha
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ENTREVISTA A BOLA «Estou a provar que tinha razão em ser maluco»

INTERNACIONAL15.04.202512:00

A incrível história do português José Fernando Tavares, que chegou a Moçambique há 13 anos, quis fugir ao fim de três meses, mas acabou por ficar por causa do futebol. Chegou sozinho, criou uma empresa de construção civil que dá emprego a 600 pessoas. E é dono do FC Beira, um clube que salvou da extinção, onde é dono, presidente, investidor e treinador, e se tornou numa referência em termos desportivos, sociais e, agora, de investimento em infraestruturas

Quando, em agosto de 2012, José Fernando Tavares, português de Gaia, pisou chão de Maputo estava longe de imaginar o quanto, 13 anos depois, a sua vida estaria tão mudada. «Eu fui para Moçambique quase sem saber… Eu trabalhava numa grande empresa das área da construção civil e um colega meu desafiou-me a tentar a sorte em Moçambique», conta. Mas havia um requisito: José Fernando Tavares sempre teve uma paixão enorme por futebol e conciliava a atividade profissional com o treino nos escalões de formação de clubes da AF Aveiro e Coimbra. As oportunidades profissionais que Moçambique proporcionava eram interessantes, mas era ponto assente que tinha de continuar a conciliar com o futebol. «Andei a pesquisar tudo sobre o futebol moçambicano. Os principais clubes. Na altura estavam lá vários treinadores portugueses. O Litos, o Diamantino, o Vítor Pontes, mas com quem eu me identificava mais era com o Vítor Urbano», conta.

Chegou em agosto e em dezembro tinha decidido que iria passar o Natal com a família e não mais voltaria. «Profissionalmente até estava a correr bem, mas de fultebol… nada e o impacto emocional foi muito agressivo. Muita coisa diferente, uma realidade estranha, realidades que mexeram muito comigo, não me estava a adaptar». 

O ponto de não retorno aconteceu quando comunicou a um cliente que iria regressar de vez a Portugal. «Ele pediu-me muito para ficar em Moçambique, gostava muito do meu trabalho e tinha ainda várias obras para fazer.  Eu respondi que não aguentava mais, ele insistiu muito e então lancei-lhe um desafio: sabendo que é uma pessoa influente, disse que só ficava em Moçambique se me arranjasse um clube para treinar, era a única maneira de alimentar a paixão e aliviar o stress».  

Treinar o 'Benfica da Beira'

O amigo mexeu as influências e agendou uma reunião entre o presidente do Têntil do Punguè, da cidade da Beira, clube da primeira divisão, e José Fernando Tavares. «Correu muito bem e no final o presidente disse que contava comigo em janeiro, altura em que começa a pré-época. Acertámos tudo o que havia a acertar, passei o Natal em Portugal e voltei, agora mais animado», conta. Até porque percebeu que o Textil do Punbguè, pelo número de adeptos e paixão popular, «é o Benfica da Beira» 

No primeiro dia de trabalho, quando foi conhecer o clube por dentro, o choque com a realidade. «Levaram-me ao campo do Matadouro. Quando lá chegámos disseram-me: 'é aqui que vamos treinar'. Mas eu olhava à minha volta e não via campo nenhum… Fiquei confuso… Aqui? Sim, mister, aqui… Levantei os olhos e, de facto, ao longe vi uns postes em madeira a fazer de baliza…. E vi também capim que dava pela cintura no local onde iria treinar. Pensei: estou feito ao bife…», desabafa José Fernando Tavares, rindo. Prometeram-lhe que iriam cortar todo o capim e que o campo estaria em condições para o primeiro treino da época.   

Plantel? Qual plantel? Cem miúdos à experiência

Mal recomposto do primeiro embate, logo um segundo quando lhe quis conhecer os jogadores disponíveis no plantel. «Responderam-me que da equipa da época anterior só tinha ficado o capitão… ‘Só o capitão?’», exclamou o treinador português. Para o tranquilizarem, disseram-lhe que iriam aparecer uns 100 ou 200 jogadores para treinar à experiência, ele escolheria os melhores e fariam uma boa equipa. José Fernando voltou a engolir em seco. 

O treinador respirou fundo, lá conseguiu fazer um plantel e as coisas até nem estavam a correr mal quando surge mais uma contrariedade. «Tinha o nível B da UEFA e a federação entendia que não tinha habilitações. O que estranhei, já que os outros tinham o B da CAF e treinavam, mas sou realista, estou noutro país, era eu quem tinha de me adaptar e acabei por ter de sair para dar lugar a um treinador moçambicano. Ainda tentaram que ficasse noutras funções, mas eu queria era treinar e fui embora», revela José Fernando Tavares. 

O dia em que lhe ofereceram um clube

Passados dois meses apareceu-lhe uma equipa chamada FC Beira. Nem registada estava, andava pelos provinciais. Acabada a época, comunicaram-lhe que a equipa iria desistir, não havia dinheiro. Ainda assim, perguntaram a José Fernando Tavares se queria tomar conta do clube. Pensou, mas como sabia que não aguentava muito tempo sem futebol... aceitou. «Tratei de toda a parte burocrática para legalizar o clube e assumir a sua posse e percebi que tinha a oportunidade de criar um projeto a sério», conta José Fernando Tavares, que se tornou no dono, presidente, financiador e treinador do FC Beira. 

Começou pela base, a formação. Os miúdos apareciam, ele treinava-os. Fez um acordo para treinar no campo da UCM e colocou luz. «Éramos a única equipa que treinava à noite, porque sempre foi ponto sagrado que os jovens não se podiam dedicar apenas ao futebol. Tinham de estudar, uns, outros tinham de trabalhar ou aprender ofícios», conta. Tanto que vários jogadores seus da formação encontraram emprego na empresa de construção de José Fernando, que cresceu tanto que já dá trabalho a 600 pessoas. «Os que não estudavam, aprendiam um ofício. Eletricista, canalizador, tudo… E veja como são as coisas, o meu encarregado geral foi meu jogador da formação, aprendeu e hoje é um profissional competente e de sucesso», congratula-se José Fernando Tavares. 

O projeto foi crescendo. Trezentos jovens a competir nos escalões de formação e resultados desportivos encorajadores. Tanto que José Fernando Tavares teve de tomar outra grande decisão: «Se queria crescer, se queria um clube a sério, tinha de criar insfra-estruturas», conta. E lançou mão à obra. Ou melhor, às obras.  

Que loucura: uma escola, pavilhão, estádio, centro de estágio...

Primeiro montou um sintético num pavilhão da empresa para ser escolinha. Depois, construiu uma escola, já oficializada, do primeiro ao 12.ª ano. Em fase de conclusão, um pavilhão multiusos que é um brinquinho e que pode ser inaugurado com a fase final do campeonato nacional de futsal. Já há equipas de basquetebol na Beira a pedirem para lá treinarem e estudam-se parcerias que podem passar por cedência de instalações a troco de apoio técnico e desportivo às próprias equipas do FC Beira, que pode ter começado pelo futebol mas abraça já abraça o karaté e vai criar equipas de basquetebol e futsal, podendo ainda avançar com o andebol. 

Cereja no topo do bolo, um estádio de raiz. A primeira fase está adiantada e, no final do ano, poderá até ser inaugurado. Terá capacidade inicial para quatro mil pessoas, mas será sucessivamente ampliado até, sonha José Fernando Tavares, «ter condições para legalização pela CAF e receber jogos da Seleção». Tem espaços comerciais, um anfiteatro ao ar livre para espetáculos, espaços para reuniões e conferências e um edifício com 16 quartos e todo os serviços de apoio a qualquer equipa que ali queira fazer estágio ou pernoitar antes de jogos na cidade da Beira. «Este projeto, é o objetivo, é ser sustentável por si só». Sim, porque até agora José Fernando já gastou uma fortuna dos lucros que tem a empresa. Poderia estar bem rico, mas… 

Conta cheia de dinheiro ou ego em alta? José Fernando Tavares nem hesita...

Dizia que podia estar bem rico, mas José Fernando Tavares aponta a outras prioridades. «Não sou hipócrita, o dinheiro é importante, mas a realização pessoal é muito mais importante. Sou uma pessoa realizada por sentir os outros felizes pela obra criada e por ter obra para mostrar», diz, emocionando-se. 

O trabalho social mantém-se. De quando em vez vai aos bairros mais periféricos, onde o sonho nem sempre consegue entrar, e faz captações. Os que não forem selecionados, levam sempre presentes, a começar por material escolar e outros bem. Os outros têm oportunidade de não saltar refeições, aprender ofícios e estudar. 

«Todos os jogadores da nossa equipa sénior, assente na formação, estudam. Uns medicina, outros educação física, outros noutras áreas. Todos recebem. O meu legado será esse. Mais do que as instalações, o impacto que deixo é na vida das pessoas. O meu ego está cheio…», desabafa de novo.  

Passaram 13 anos desde que chegou a Moçambique. Ao fim de três meses queria voltar a Portugal, agora sente-se feliz na cidade da Beira. Adora as pessoas, a comida, as belezas paisagísticas do país, só não se dá muito bem com o calor por não se adaptar ao ar condicionado. Ali refez família, ali se tornou um empresário de enorme sucesso na área da construção civil, com os lucros pegou num clube que nada tinha num caso exemplar e de estudo. Foi muito além do que os sonhos que tinha quando chegou à Pérola do Índico.  

José Fernandes diz que vai convidar A BOLA a visitar as instalações quando estiverem prontas. E revela que acha graça que lhe chamem grande maluco. A esses responde: «Estou a provar que tinha razão em ser maluco». E ri. Muito.