Desporto Entrevista A BOLA: «A Liga é pioneira mundial na integridade e transparência»
Emanuel Macedo de Medeiros é há sete anos o diretor-executivo (CEO) da Sport Integrity Global Alliance (SIGA), ou, em português, Aliança Global para a Integridade no Desporto. Antes, esteve quase duas décadas na liderança da Associação das Ligas Europeias de Futebol Profissional (EPFL). A luta pela transparência e integridade foi sempre a sua batalha, à qual começam a juntar-se fortes aliados. Como a Liga portuguesa. Em entrevista a A BOLA, o dirigente açoriano fala de um inovador sistema de rating para organizações desportivas, da centralização de direitos, da importância de denunciadores, como Rui Pinto, e da necessidade de clarificar as transferências e acabar com a máfia no Desporto.
- A Liga Portugal vai ser a primeira liga profissional de futebol em todo o Mundo a receber uma certificação da SIGA, por via de auditoria a uma série de parâmetros cujos resultados serão conhecidos na primeira semana de julho. O que significa isto?
- A Liga Portugal, como outras ligas, é o topo do futebol no seu País, porque dela dependem as vertentes do espetáculo, comercial e profissional. E demonstrou um enorme espírito de liderança quando nos procurou e connosco assinou um protocolo tendo em vista uma auditoria às suas práticas a vários níveis. É um escrutínio de uma entidade independente a que a Liga se submeteu voluntariamente e que está agora na fase final. No fundo, a Liga entendeu a força da integridade nas suas práticas e como uma certificação da mesma pode levar público, patrocinadores ou investidores a querer associar-se, sabendo que estão a fazê-lo junto de uma organização transparente e que defende a integridade.
- Será o caso da Liga?
- A decisão da Liga de se voluntariar para um escrutínio à sua transparência, à integridade das suas práticas e à sua governança é absolutamente revolucionária. É um processo muito desafiante e muito complexo, mas ter a Liga portuguesa como a primeira liga profissional a aderir aos standards universais da SIGA e a submeter-se ao escrutínio das nossas equipas é uma assunção de liderança, de maturidade e um sinal muito forte de uma liga pioneira mundial na integridade e transparência, comprometida com a evolução e disposta a adotar as melhores práticas. É o que os adeptos querem, os clubes merecem e os governos esperam. Eu, com 30 anos de carreira na primeira linha do futebol profissional e internacional, não posso deixar de congratular-me com isso.
- O resultado da auditoria passa, então, pela atribuição de alguma pontuação de transparência ou integridade?
- Trata-se de um sistema de rating nosso, o SIRVS, sigla que em português poderia traduzir-se por Sistema Independente de Rating e Verificação da SIGA.
- Algo semelhante às agências de rating que classificam nações, bancos, empresas?
- Nem mais. Mas o nosso é absolutamente inovador, um dos maiores contributos que a SIGA trouxe para cima da mesa. Temos os standards universais mais evoluídos do setor, exclusivamente desenhados e pensados para implementação na indústria do desporto. Quisemos oferecer a bala de prata, o elemento que, sem qualquer dúvida, diferenciará as organizações que são bem geridas e que se pautam por elevados níveis de integridade daquelas que se limitam a apregoar sem nunca fazer prova. É uma pedrada no charco.
- Qual a importância desta certificação?
- O futebol está a atravessar um período de profunda mudança, não só no que diz respeito à sua globalização e dimensão económica, mas também quanto ao papel social e cultural que desempenha. E isso traz um acréscimo de responsabilidade. É neste campo que as organizações devem liderar pelo exemplo. E esse exemplo está nos parâmetros propostos pela SIGA, que é líder mundial nos campos da Boa Governança e da Integridade no Desporto. O nosso sistema responde a tudo isto e sobretudo aos anseios de patrocinadores, cuja exigência é cada vez maior, e dos adeptos, que buscam cada vez mais a verdade desportiva. Sete anos depois, a SIGA é o garante da confiança e do apoio que o desporto merece junto de entidades públicas ou privadas que a ele se queiram associar.
- Como funciona o sistema de certificação?
- Desde logo, o que oferecemos a quem nos procura é um manual de boas práticas, desenhado por diversos especialistas de várias áreas e nacionalidades e que integra o crème de la crème dos melhores standards universais: a boa governança (com, entre outras, regras simples, como limitação de mandatos e a separação real de poderes), a transparência financeira (transferências, alienação de direitos televisivos, contratos de patrocínio, aquisição de partes das SAD, etc.) e a integridade das apostas desportivas. Resta às organizações segui-las, na totalidade ou em parte, e depois, em assim desejando, requerer a auditoria que resultará na certificação do seu rating (Ouro, Prata ou Bronze). Ah, faltou-me referir outro parâmetro, o quarto, que é o desenvolvimento e proteção de jovens menores.
«NÃO ENTENDO RESISTÊNCIA DA INDÚSTRIA AO CONTROLO DAS TRANSFERÊNCIAS»
- O que está a ser feito ao nível da transparência total no mercado global de transferências?
- Há propostas legislativas, os governos são bem-intencionados, mas as organizações são muito resistentes. Há 20 anos que me bato por uma ‘clearing house’ [casa de clarificação, em português] para as transferências de jogadores, uma entidade independente que certificasse as credenciais dos investidores, as origens dos capitais e os fluxos financeiros. E não percebo porque ainda não existe, não entendo a resistência da indústria ao controlo das transferências. As transações de jogadores são a causa das maiores dívidas dos clubes e da superinflação no futebol.
- Porquê?
- Eu apostaria que, com uma 'clearing house', a inflação teria arrefecido. Não podemos continuar a assistir à falência de clubes ao mesmo tempo que os proventos do futebol estão nas mãos de uma elite de jogadores e de empresários. Isto é insustentável. Já vi mais resistência da FIFA, mas hoje já sinto alguma abertura, alguns passos positivos.
«LIGA FOI CÉLERE E AGIU BEM NO ‘CASO BSPORTS’»
- Tocando num dos tópicos do sistema de rating da SIGA, o da proteção de menores, que opinião tem do processo em torno da Academia BSports e de Mário Costa, ex-presidente da mesa da AG da Liga, e que envolve acusações de tráfico humano de menores?
- Esta é uma área estratégica para o futuro. A formação foi o que, a partir dos anos 90, levou Portugal a crescer a nível internacional. Formação, criação de talentos, encaixe financeiro na venda para clubes mais ricos. Esta é a fórmula, a estratégia. E o encaixe financeiro tem de voltar ao início: maior investimento em formação, mais talentos criados, maiores encaixes. E de novo e de novo… Mas isto não se compadece com tráfico de menores. Quem é responsável por menores tem de ter um cuidado ainda maior e é por isso que nos batemos. A SIGA tem como um dos quatro pilares fundamentais a formação e proteção de jovens. Ainda há muito trabalho a fazer e é difícil ter um fiscal em cada Academia, mas não se pode admitir a mínima negligência no trabalho com jovens.
- A Liga agiu bem neste processo, afastando Mário Costa e abrindo um inquérito?
- A Liga fez o que era expectável. Foi célere e agiu bem. É importante reconhecer que os órgãos da Liga são eleitos em eleições separadas. Há separação de poderes. A mesa da AG não é tutelada pela direção. E foram já eleitos novos elementos.
«NÃO QUERO MAIS UM FUTEBOL GOVERNADO POR MÁFIAS OU POR CRIME ORGANIZADO»
- Integrar a SIGA pode ajudar a combater o lado mais opaco dos negócios do futebol?
- Não tenho dúvidas disso. Há muito que combatemos esse lado de opacidade. O futebol sendo o desporto mais universal atrai muita atividade criminosa. É preciso saber os nomes que são o destino final do dinheiro, que estão por detrás de testas de ferro sob a forma de fundos sediados em paraísos fiscais ou em zonas nebulosas, onde não há legislação ou regulação.
- E como se faz isso?
- Antes de mais, saber quem são os últimos beneficiários, os donos disto tudo, não pode ser algo como olhar para um site e ver o nome das empresas que detêm o capital social porque isso é apenas fachada. O que importa é saber quem são os últimos a beneficiar e não os testas de ferro. Não digo que queria um futebol cujo futuro seja determinado pelos media ou por autoridades policiais, mas o que não quero mesmo é um futebol governado por máfias ou por crime organizado. Isso não quero e irei bater-me sempre contra isso. E isso deixa-me muitas vezes isolado, mas nunca vacilei. Sempre me bati por princípios.
- Está isolado porque as organizações estão mesmo ocupadas por esses poderes ocultos?
- Com certeza que sim. E isso é alimentado por um clima de permissividade. E se governos ou organizações desportivas não se regulam de modo a proteger o negócio, o espetáculo e os seus valores e os seus intervenientes, então, por conivência e inação, tornam-se cúmplices dessas tentativas cada vez mais frequentes e sofisticadas de infiltração de criminosos no Desporto.
- Mas a situação de transparência e integridade está a piorar?
- Não considero isso. Acho que há uma evolução visível nos últimos anos. Primeiro, por ação do chicote, por via das grandes investigações do FBI à FIFA e outras organizações de diversas modalidades. Segundo, por via de uma reforma genuína e assumida por várias organizações desportivas que querem estar no topo da integridade. Muitas trabalham connosco. Para que o caminho seja cada vez menos o de um polícia em cada esquina (o do chicote) e mais o da reforma por dentro.
- Isso exige muita união. Ela existe?
- Tocou no ponto certo. Não basta a boa vontade. É preciso uma frente unida com todos os envolvidos no sentido de maior integridade e transparência. Esse papel unificador pode ser o do SIGA.
- Há esperança no futuro do futebol?
- A janela de oportunidade está a esgotar-se. Confio na tomada de consciência geral, mas vivemos num mundo muito complicado. É uma espécie de nova Idade Média… Há falta de liderança, de visão de futuro e de um sentido coletivo que mobilize. Que numa era de crise de valores, de crises sanitária e económica, o Desporto possa cumprir a função de agregar, mas para isso precisa de liderar, com integridade e transparência. É o que procuramos fazer.
- Como vê o mundo do futebol dentro de 10 anos?
- Espero que seja um futebol sem casos e de causas. E que tenhamos um quadro legislativo adequado, moderno, ágil e robusto. Que esteja mais protegido contra as ondas de assalto de indivíduos sem escrúpulos e de crime organizado. E que atinja um estatuto de maturidade que é aquilo por que me tenho batido há 30 anos para que todos nos possamos rever neste setor sem igual.
«PORTUGAL PODE COMPETIR COM AS BIG 5»
- A centralização de direitos de transmissão televisiva pode mudar o cenário do futebol português?
- Dou como exemplo a criação da Premier League inglesa há décadas e que teve como base a comercialização centralizada de direitos. Veja-se a dimensão mundial que ganhou. Ou Espanha, depois de muitos anos de discussão. Em Portugal, é fundamental chegar aí. Mas tem de se acabar com este debate de avanços e recuos e seguir em frente. Trata-se da capacidade negocial a nível internacional e dos ganhos que daí advirão. Temos de deixar de ser a mosca no teto que persiste em ver o mundo de pernas para o ar.
- E vai mesmo acontecer em 2026?
- Eu espero que sim. Está legislado assim, a Liga terá de zelar pela sua aplicação a bem do nosso futebol. Portugal pode competir com as Big 5 [Ligas de Inglaterra, Espanha, Alemanha, Itália e França], mas não pode continuar a gerir o futebol como há 100 anos…
«JÁ ESTAMOS A TRABALHAR COM O GOVERNO DO BRASIL»
- O que pode contar-nos sobre a expansão para o Brasil e para a América Latina?
- A SIGA Latin America foi constituída no ano passado em São Paulo. E já integra os 40 maiores patrocinadores da América Latina. E estes já lançaram um ultimato ao movimento desportivo, dizendo-lhe que tem três anos para adotar os standards universais da SIGA, demonstrando ser merecedor da confiança desses patrocinadores. Isto são sinais de evolução de um setor que se quer ver livre de suspeições.
- E em que outras áreas está a SIGA a trabalhar no Brasil?
- Olhe, estamos a trabalhar e a apoiar o Governo e o Congresso em todo o processo de legislação desportiva. Estamos a falar de um mercado de 200 milhões de pessoas. Isto envolve a CBF, a federação de São Paulo, federações de outras modalidades. O Brasil quer evoluir. E a grandeza de um país também se vê no seu movimento desportivo.
«SOU A FAVOR DOS DENUNCIANTES»
- O que acha de processos como o Football Leaks e da existência de whistleblowers (denunciantes) como Rui Pinto?
- Não queria comentar o caso em particular, mas considero que sistemas de denúncia são instrumentos necessários para que as autoridades policiais possam investigar e fiscalizar. Sou a favor deles. Mas é preciso acautelar a proteção das fontes denunciadoras. E, sim, há sempre a frustração do denunciante que se expõe, corre riscos e depois os processos resultam em… nada. Sabendo que uma coisa é denunciar, outra é produzir prova que leve a condenação. Por fim, há um fervor clubista em países como os nossos, há o risco de denúncias sem qualquer fundamento. São problemas que têm sido identificados. É importante, ainda, pôr as autoridades a cooperar. O combate à corrupção exige cooperação entre países, o que conseguimos em 2020 entre Portugal e Itália, e como conseguimos agora com os G-20 a colocarem entre as três prioridades a luta anticorrupção no Desporto.