E se Gyokeres saísse a custo zero do Sporting?

A BOLA falou com um especialista em direito desportivo sobre a decisão da UE de dar razão a Lassana Diarra no processo deste contra a FIFA. À vista está uma ‘Lei Bosman 2.0’ que poderá revolucionar o mercado europeu de transferências

Foi há quase 30 anos que o Acórdão Bosman, também conhecido como Lei Bosman, revolucionou o mercado de transferências na Europa, ao definir que os futebolistas, por serem trabalhadores comunitários, não podiam ser impedidos de jogar noutro país da União Europeia (UE) por normas internas da UEFA ou das respectivas federações nacionais — foi proferido pelo Tribunal de Justiça da UE (TJUE) em 15 de dezembro de 1995, cinco anos após Jean-Marc Bosman avançar para a justiça, exigindo que o RFC Liège o libertasse para que ele pudesse jogar nos franceses do Dunkerque.

Em 2014, Lassana Diarra (à esq.) acabou por rumar ao Marselha. Na foto, surge em duelo com Di María, então no PSG (Imago)

Agora, um outro caso, já apelidado de Lei Bosman 2.0, ameaça revolucionar ainda mais o mercado de compra e venda de futebolistas, na sequência de nova decisão daquele tribunal declarando que alguns pontos do Regulamento da FIFA relativo ao Estatuto e à Transferência de Jogadores (RETJ) são contrários ao direito europeu, dando, assim, razão a Lassana Diarra, que há 10 anos contestou os moldes da sua saída do Lokomotiv Moscovo.

Em 2014, alegando que estava a receber menos ordenado do que o contratualizado, o ex-internacional francês, que vestiu as camisolas de Real Madrid, Chelsea e PSG, avançou para um braço de ferro com o emblema russo, que justificou a baixa de salário com motivos de ordem disciplinar. Resultado: o jogador deixou de comparecer nos treinos e acabou por rescindir.

Diarra em ação pelo Lokomotiv Moscovo, poucos dias antes de rescindir unilateralmente (foto Imago)

O problema surgiu quando a FIFA impediu Lassana Diarra de assinar livremente por outro clube, após queixa interposta pelo Lokomotiv Moscovo, que exigia ser ressarcido em 20 milhões de euros, valor que, mais tarde, a FIFA reduziu para 10,5. E os regulamentos da FIFA referem que jogador e novo clube devem assumir esse pagamento.

Diarra estava, então, a ser cobiçado pelo Charleroi, emblema belga que desistiu da transferência, perante a hipótese de ter de pagar as despesas imputadas ao jogador. Caso este pagamento não aconteça, e ainda segundo as leis FIFA, a federação a que o antigo clube do futebolista pertence deve recusar emitir o certificado internacional de transferência a favor da entidade junto da qual o novo clube está inscrito enquanto houver um litígio.

Porém, desde ontem, esta pode deixar de ser a realidade, uma vez que o mencionado tribunal europeu, sedeado no Luxemburgo, entendeu que «estas regras são contrárias ao direito da União Europeia», uma vez que «são suscetíveis de dificultar a liberdade de circulação dos futebolistas profissionais que pretendam desenvolver a sua atividade, assinando com um novo clube estabelecido no território de outro Estado-Membro da UE».

Pode ainda ler-se no Acórdão do TJUE: «Estas regras sujeitam estes jogadores e os clubes que os pretendem contratar a riscos jurídicos significativos, a riscos financeiros imprevisíveis e potencialmente muito elevados, assim como a riscos desportivos consideráveis, que, no seu conjunto, são suscetíveis de dificultar a transferência internacional dos referidos jogadores.»

José Miguel Albuquerque, advogado de direito do desporto na 'TELLES advogados' e presidente da Associação Portuguesa de Direito Desportivo

Ou seja, a partir desta decisão, que pode ser histórica, «as regras em causa serão repensadas, discutidas e alteradas», como explicou a A BOLA o especialista José Miguel Albuquerque, advogado de direito do desporto na TELLES advogados e presidente da Associação Portuguesa de Direito Desportivo: «Esta decisão é mais complexa e juridicamente densa do que o Acórdão Bosman. Não se trata de censurar normas do regulamento de transferências da FIFA por limitarem a livre circulação de trabalhadores, mas também por limitarem a livre concorrência. E irá implicar mudança nas regras, que presumivelmente agora se fará com diálogo entre a FIFA e outros players - jogadores, federações e até com a FIFPro, que evidentemente celebra esta decisão.»

O especialista em direito desportivo considera, porém, que as relações contratuais não estão em causa, uma vez que «o princípio de responsabilidade pelo incumprimento contratual é de Direito e não propriamente uma regra FIFA».

«Isto para dizer que um atleta que rescindir unilateralmente e sem justa causa o seu contrato com determinado clube continuará a ter de indemnizá-lo», conclui José Miguel Albuquerque.

Esta decisão é mais complexa e juridicamente densa do que o Acórdão Bosman!

Perante isto, o pânico não deverá instalar-se de imediato entre os clubes, mesmo que, seguindo à letra o que esteve na base do caso Diarra, se, por exemplo, Gyokeres (quem diz o sueco, diz Akturkoglu ou Samu Aghehowa) considera que o Sporting não cumpre tudo o que foi contratualizado, deixa de ir aos treinos e ainda rescinde unilateralmente o vínculo com os leões, este ficaria então livre para assinar a custo zero (e não a troco dos desejados 100 milhões de euros) com outro clube do espaço europeu.

Jean-Marc Bosman fotografado em 1996, poucos meses após o Acórdão que mudou o futebol europeu (Imago)

«Este acórdão por Lassana Diarra vai pôr fim à prática degradante de transformar jogadores em mercadorias», pode, entretanto, ler-se num comunicado conjunto dos advogados belgas Martin Hissel e Jean-Louis Dupont, representante de Diarra e que, em 1995, foi o homem que defendeu... Jean-Marc Bosman.

A revolução segue dentro de momentos.