Está uma grande fila de pessoas e aparece um casal recém-casado numa berlina Audi. A porta abre-se, os noivos saem e dirigem-se à porta giratória do Museu Mercedes-Benz para uma sessão fotográfica. Este momento representa o que é este edifício e o que carrega lá dentro: é muito mais que a história de uma marca, é a história da indústria automóvel, cujo ponto de partida foi dado nesta cidade da Alemanha. Está para Estugarda como os Jerónimos para Lisboa, salvaguardando as diferenças temporais e estéticas. Este conceito, o da beleza exterior, aliás, é o que capta o olhar humano em primeiro lugar: uma arquitetura futurista que transporta o visitante para um ideal de inovação constante, ali mesmo ao lado da sede da empresa e do Arena Estugarda, um dos estádios do Euro 2024. Apesar de já ter 18 anos (foi inaugurado em maio de 2006, pouco antes do arranque do Campeonato do Mundo realizado neste país), a fachada, cores, materiais e elementos que compõem o museu são de uma enorme contemporaneidade. Parece algo vindo do futuro ou pelo menos inspirado em filmes de ficção científica passados numa data imaginária lá muito à frente no tempo. Os elevadores são um bom exemplo: cápsulas com um design aerodinâmico que mais parecem grandes balas que sobem e descem coladas à parede de cimento cru. É uma experiência propositadamente feita de contrastes: o processo de entrada é altamente tecnológico, mas o início da exposição leva-nos imediatamente para a era dos cavalos como veículo de locomoção do Homem e para novidades linguísticas: o conceito cavalo de potência. Bem-vindos ao início do automóvel. Na primeira sala os veículos históricos estão constantemente a ser polidos para refletirem as luzes de colocação criteriosa que fazem daqueles objetos de culto os verdadeiros protagonistas. Apesar disso, os seus criadores também são destacados na grande linha cronológica. Por exemplo, é recordada a história do primeiro automóvel a combustão de sempre: o Benz Patent Motorwagen, registado em 1886. Karl Benz criou o motor a gasolina em Mannheim, enquanto Gotlieb Daimler e Wilhem Maybach motorizaram a carruagem. Tem apenas três rodas, tantas como os criadores que, apesar de estarem separados por apenas 100 quilómetros, nunca se conheceram e criaram empresas concorrentes. Só nos anos 20 do século XX, e para compensar as perdas após a I Guerra Mundial, ambas as companhias uniram-se para criar um grupo que teria o mesmo nome até 2021, quando a Daimler fez-se novamente sozinha à estrada. Outra zona de destaque é o automóvel que entrou duplamente para os livros: por ter sido a base de todos os futuros carros, abandonando o conceito da carruagem sem cavalos (centro de gravidade mais baixo, distância maior entre os eixos, motor mais leve a um radiador eficiente) e por ter sido o primeiro com a marca patenteada Mercedes. A história do nome é explicada: deveu-se à exigência do homem de negócios austríaco Emil Jellinek, que pediu à Daimler-Motoren-Geserllschaft (e empresa do ainda rival Karl Benz) que desse o nome da sua filha Mercedes àquele veículo que o próprio iria passear em Nice, no Sul de França. O automóvel criou tanto falatório em 1901 que já não faria mais sentido voltar atrás. Mais tarde, aquando da fusão das empresas, Karl conseguiria incluir o apelido Benz. E assim ficou até hoje. Um modelo por €135 milhões São mais de 16 mil metros quadrados de área e mais de 160 peças de exposição, e não apenas automóveis ligeiros: locomotivas, autocarros (o primeiro autocarro de passageiros patenteado, em 1895, salta à vista) e aviões. Um universo industrial que acompanhou a evolução da sociedade e que é bem exposta na forma como são retratados os grandes acontecimentos e protagonistas da história contemporânea: os primeiros direitos sociais, a II Guerra, o apoio forçado ao regime de Hitler, o pós-guerra, o baby boom, a conquista do Mundial 1954 pela Alemanha, a música de Elvis Presley, a ida à Lua ou a criação do Euro. É uma forma de explicar também a necessidade que a marca teve de se adaptar a tempos diferentes. Dos anos abastados da década de 50 ao aperto nos anos 70 após o choque petrolífero. Dos carros mais pequenos e baratos mas sem perder o espírito Mercedes (o 190 D e o 200 D, que em tempos esteve exposto em formato de táxi português, com os seus quase dois milhões de quilómetros percorridos no grande Porto) ao luxo, potência e design que fazem as delícias dos colecionadores. É o caso do Mercedes 300 SLR de 1955, um coupé desportivo do qual só foram feitos dois modelos. Um está no museu, o outro foi vendido a um particular em 2022 por 135 milhões de euros, o valor mais alto alguma vez pago, de forma oficial, por um automóvel. Para os fãs de protótipos, há um pouco de tudo. E o ângulo também. Os veículos que procuravam desafiar as leis da física ainda nos anos 30, atingindo velocidades acima dos 400 kh/h (mas cujo projeto a II Guerra pôs fim) ao SUV de 1991 que apresentou, na feira automóvel de Detroit, conceitos inovadores à data como o ajuste do banco do condutor ou faróis LED. A presença no desporto automóvel ocupa uma área generosa. Desde o primeiro modelo no início do século XX ao Fórmula 1 que fez Lewis Hamilton sagra-se o piloto com mais campeonatos do mundo da história da modalidade. São exemplares de perder a vista dispostos numa pista oval a fazer lembrar os circuitos da Nascar. Os detalhes quer da marca quer do marketing também não são descurados. Da evolução do logótipo (as três estrelas que representam os elementos ar, terra e mar) à era da personalização, uma das conquistas do consumidor do século XXI, que já não passa sem um mínimo de costumização para se sentir realizado. É esta experiência que atrai mais de 800 mil visitantes por ano e ajuda a fazer de Estugarda a capital automóvel da Alemanha. Até porque à saída da exposição as pessoas são convidadas a pôr os olhos num Porsche 924 Turbo e visitar o museu do outro grande fabricante da cidade. Mas isso já é outra viagem.