Gostaria de saber fixar, numa breve resenha, alguns dos diálogos, de vária natureza, que o Sr. José Maria Pedroto me proporcionou – conversas que a Dra. Cecília Pedroto e os Professores José Neto e João Mota ainda esclarecem, com um ou outro pormenor que eu, neste momento, por força da minha idade, poderei omitir. Mas… depois de ter lido (e relido) a entrevista que o “mister” Sérgio Conceição concedeu à revista do Expresso (2020/9/10) como que senti, ainda viva, a felicidade dos momentos que vivi com estes meus Amigos, designadamente com o José Maria Pedroto. O Sr. Jorge Nuno Pinto da Costa, acompanhado pelo Artur Jorge, só poucos anos mais tarde, começou a convidar-me a assistir às sessões de poesia, num “bar” da Cidade Invicta, onde o presidente do F.C.Porto declamava António Nobre e José Régio. O Artur Jorge, pela latitude e plasticidade do seu espírito cultivado, estranhava que o presidente Jorge Nuno não declamasse também a Sofia, o Torga, o Manuel da Fonseca, o Rui Belo, o Eugénio de Andrade, a Fiama e outros que ele muito bem conhecia e com quem privara já. Se não estou em erro, uma noite, na Avenida da Liberdade, em Lisboa, encontrei o Artur Jorge em conversa animada com o Manuel da Fonseca. E não esquecerei nunca o Manuel da Fonseca, figura destacada do Neorrealismo e que não escondia uma simpatia muito especial pela “anátomofisiologia” da Natália Correia, de braços abertos, em puro êxtase, a dizer-nos: “Ela é tão boa, tão boa que, quando passa aqui, na Avenida da Liberdade, até as árvores se curvam e se afastam para ela passar”. Ao lado do Artur Jorge e de mim, o Manuel da Fonseca parecia erguer-se, não para subir aos céus, em corpo e alma, mas sobre uma onda alterosa de voluptuosidade. O Manuel da Fonseca, o Artur Jorge, o Manuel Sérgio – que saudades eu tenho de todos eles! Que saudades eu tenho de mim… Repito-me: depois de ter lido (e relido) a entrevista que o “mister” Sérgio Conceição concedeu ao Expresso, recordei-me do meu livrinho Futebol – Ciência e Consciência, que mereceu o prefácio do Dr. José Lourenço Pinto, presidente ilustre da Assembleia Geral do F.C.Porto e um homem de exemplar dignidade, dado o bom cumprimento que sempre fez das altas funções que tem desempenhado no desporto nacional. Na página 13, tornou-se imperativo, para mim, assinalar: “Se escutássemos uma galeria de vozes, mormente futebolistas, técnicos e dirigentes do F.C.Porto da década de 70 e princípios da décade de oitenta do século passado e que portanto viveram o renascimento do Dragão, liderado por Jorge Nuno Pinto da Costa e José Maria de Carvalho Pedroto, descobriria estas duas pessoas (um dirigente e um treinador) verdadeiros exemplos de uma pertença sem fissuras ao ideal de transformação de um clube (…). Mais do que uma “evolução na continuidade” o Futebol Clube do Porto precisava urgentemente de “mais do que desporto”, para desenvolver-se: de novos métodos, de um novo espírito, de uma gestão mais ousada, de uma visão outra do mundo, da vida, da sociedade, da história. E a verdade é que o Futebol Clube do Porto passou, principalmente pela vontade e lucidez destes dois homens, de um clube provinciano e complexado a uma instituição admirada e respeitada no mundo todo”. E como se prepararam eles, José Pedroto e Pinto da Costa, para um trabalho de tamanha monta, dado que anteciparam, com razão, que teriam uma oposição feroz e desgastante, tanto no seu Clube como na macrocefalia lisboeta? Uniram-se coesos, disciplinados, doutrinados e, porque as ideias que defendiam pareciam em consonância com os mais documentados e argutos sócios do Clube, depressa se sentiram orientados no melhor sentido. Faltava ao F.C.P. um condutor, um chefe, um presidente e um treinador com a capacidade bastante para implantar a esperança num futebol destroçado, desgastado, sem qualidade? Em resumo: faltavam um presidente e um treinador? Eles aí estavam: Pinto da Costa e José Pedroto! “Uniram-se” escrevi eu. De facto, eram duas pessoas distintas que eram, simultaneamente, uma só, ao fazerem das suas vidas um apanágio de inteligência e de amor, em benefício do F.C.Porto. Os dois, de mãos dadas, com indiscutível pureza nas suas convicções, não deixariam de cumprir até ao fim o que consideravam o seu dever: lutar, com tenacidade e rigor, por um “Porto” diferente, à altura dos pergaminhos da Cidade Invicta. O José Pedroto faleceu, no início da jornada. Mas eles eram “um em dois” e portanto, hoje, assim continuam: José Pedroto continua vivo na fecunda, lúcida, incomparável presidência de Pinto da Costa. O jornalista Pedro Candeias, na entrevista ao Sérgio Conceição, descobriu que ele “fala muito em rigor” – o que permitiu ao atual treinador do F.C.Porto a resposta seguinte, mesmo que assim, por vezes, ele talhe um ambiente de frieza ao seu redor: “O sucesso é rigor, disciplina, algum inconformismo. Para a maioria das pessoas, é normal ganhar de vez em quando; para mim, não é nada normal, estou aqui para ganhar sempre. Fui sempre assim competitivo, intransigente, na relação com os meus amigos e com a minha família também. Irrita-me quando as pessoas pensam de forma diferente, neste aspeto. Sou muito honesto e franco e, quando as pessoas não são, digamos, disciplinadas nessas honestidade e franqueza, isso irrita-me”. E o jornalista insistiu: “Não dá segundas oportunidades?”. E ele, loquaz e vibrante: “Dou, mas passa muito tempo até isso acontecer. Não gosto daquelas mentirinhas, para parecer simpático, para não ferir ninguém. Sou assim desde pequeno e é assim que vou morrer”. Em Pedroto, também a palavra “rigor” tinha lugar de destaque, nas suas conversas. Certa vez, repeti-lhe uma frase da minha autoria: “A prática é mais importante do que a teoria e a teoria só tem valor, se for a teoria de uma determinada prática”. Ele sorriu com aprazimento e questionou-me: “Sabe que gosto muito desta sua frase? Tem rigor! É verdadeira!”. E, após breve pausa, questionou-me: “Mas não lhe parece que esta sua frase se volta contra si? É que não basta estudar os problemas, é preciso também enfrentá-los”. Concordei: “É, por isso, que estou aqui ao seu lado. Sei bem que, no futebol, como na vida, quem não pratica não sabe”. Pedroto foi um treinador de futebol de grande gabarito e um dos poucos que, “in illo tempore”, mantiveram o culto de mais saber, de mais informação, de mais conhecimento. Prezava o trabalho, como o Sérgio Conceição o faz e o diz: “Trabalho. Quer que eu desenvolva? Ok, trabalho, muito trabalho”. Mas, para saber inovar, é preciso saber desconstruir e José Maria Pedroto, para desconstruir, acolhia com júbilo as ideias que lhe chegavam doutros ramos do saber. Chegou mesmo a dizer-me: “É na aprendizagem permanente do treinador que se baseia a aprendizagem permanente do jogador”. Sérgio Conceição estuda os seus jogadores. Talvez saiba, embora o não tenha afirmado ainda, que “não há jogos, há pessoas que jogam”. Voltemos ao Sérgio Conceição: “Eu faço questão de conhecer a mulher, os filhos, de saber o percurso dos jogadores e de saber coisas sobre eles, sem que eles saibam que eu sei”. De uma vez, em conversa de Mestre (ele) para aluno (eu), Pedroto, depois de ter aduzido uma série de argumentos, em relação ao treino desportivo, em que acreditava, perguntou-me: “Qual é o treino de dominância física que preconiza para o Frasco? Ou discorda mesmo de qualquer preparação física, para um jogador aparentemente débil?”. Eu (recordo-me bem) gracejei: “Ao Frasco não lhe dava preparação física, dava-lhe de comer”. Soltou uma gargalhada, risonho e afetivo, e elucidou-me: “Está enganado, o treino, embora individualizado, deve abranger a totalidade humana de todos os jogadores. E digo-lhe ainda: o jogador, que parece fisicamente fraco, torna-se forte, com uma grande força de vontade… que é o caso do Frasco!”. Sérgio Conceição diz o mesmo doutra forma e sublinha o essencial: todos os seus jogadores têm a consciência plena do que é representar o F.C.Porto. No seu caso pessoal, não esconde: “é a religião e a família que me dão equilíbrio”. Já leu a Bíblia “umas três vezes, de uma ponta à outra” e sabe salmos de cor. O campeão desportivo é sempre um “homo competitivus”… porque tem de competir com os outros e consigo mesmo, tem de transcender e de transcender-se. Relembro Ortega y Gasset (Obras Completas, Vol. II): “A perfeição moral, como toda a perfeição, é uma qualidade desportiva” (p. 358). E, na perfeição moral, como em toda a perfeição, Deus está presente. Tornemos à entrevista e às palavras do Sérgio Conceição: “O futebol moderno está mais rápido e a intensidade e a velocidade são muito importantes, hoje em dia. A capacidade de pressionar o adversário, de lhe permitir pouco, é uma qualidade incrível e os clubes alemães são incríveis nisso. E pressionar não é só fazer o encurtamento sobre o portador da bola, mas também a cobertura ao jogador que faz a pressão. Porque muitas vezes nem é ele quem vai recuperar e a bola vai ser recuperada numa zona que nos favorece mais. É um trabalho coletivo e eu apanhei equipas alemãs a fazerem isso e ainda mais: sugerir ao adversário para não pôr a bola em determinada zona só com o movimento do corpo de um jogador, o que é espetacular”. E o jornalista: “E daí o físico”. E, explícito, o Sérgio Conceição prosseguiu: “E isso está associado ao físico: é muito importante ganhar duelos, porque o futebol é feito de duelos, de ganhar e de perder a bola, de transições ofensivas e defensivas. A inteligência está em aproveitar as qualidades dos jogadores que temos mas, falando de uma forma mais abrangente, acho que devíamos pôr mais em cima do jogador português que, tecnicamente, já é muito evoluído. É preciso fazer mais, dar mais robustez, músculo; há jogadores jovens, em Portugal, que chegam à Liga dos Campeões com muita capacidade técnica, mas falta-lhes intensidade e isso pode e deve ser trabalhado, na nossa formação, a partir dos 16, 17 anos”. Pedroto proclamava, sem cessar: “Faltam 30 metros ao futebol português”, o que levou o Manuel Jesualdo Ferreira, o Mirandela da Costa, o Carlos Queirós, o Monge da Silva, do ISEF de Lisboa, a ocuparem-se de um tema que, segundo Sérgio Conceição, continua atual. Aliás, o atual treinador do F.C.Porto não gosta de parecer original e “frondeur”. É ambicioso, voluntarioso, inteligente, de extrema sensibilidade mas, sobre o mais, sincero e honesto. Chega a ser de tocante carinho, quando fala dos seus pais e dos seus filhos (estou certo que faria o mesmo, em relação à esposa). Com os méritos intelectuais e morais, que possui; porque muito sabe de futebol - a história desta modalidade desportiva há-de falar dele com palavras de justo louvor. Esta entrevista assim o anuncia. Manuel Sérgio é professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto