Na margem de cá do Rubicão (artigo de José Antunes de Sousa, 102)

Espaço Universidade Na margem de cá do Rubicão (artigo de José Antunes de Sousa, 102)

ESPAÇO UNIVERSIDADE03.07.202118:30

Como sucede no mundo da bola, dois generais disputavam o poder: Pompeu Magno e Júlio César. O primeiro recolhia sobretudo apoios junto das classes mais elevadas e do senado, enquanto que o segundo emergia, cada vez mais, como herói das campanhas na Gália (o nosso general, com seu tiro certeiro, dá pelo nome de Éder). Ora, contrariando ostensivamente as ordens provindas de Roma que intimavam Júlio César a dispersar as suas tropas e a regressar a Roma, onde o aguardava a destituição, eis que o bravo e ambicioso general fez exactamente o contrário: colocando-se à frente da sua legião, decidiu, soltando o grito mais famoso de desafio e provocação da história militar, “alea jacta est” (as sortes estão lançadas), atravessar o rio Rubicão e avançar, sem medo, sobre Roma e carregar sobre os que contra ele conspiravam. E tão vibrante e resoluta foi a sua marcha que Pompeu e seus apoiantes fugiram espavoridos, deixando a Júlio César  caminho aberto ao poder absoluto: “ aut Cesar aut nullum”: ou César ou nada!
 

O rio Rubicão, talvez mais regato, passou assim a simbolizar um contexto de dificuldade face ao qual há que tomar, com afoiteza, uma decisão: atravessar para a outra margem, em vez de ficar paralisado na margem de cá - como aconteceu com o nosso melífluo, mas confuso, General Fernando Santos. Apesar de dispor de uma segunda linha de reserva, jovem, ambiciosa e excepcionalmente talentosa, insistiu, num esgar de auto-defesa, nos de sempre - apesar de vagarosos e exaustos. Esquecendo que as batalhas se ganham com irreverência e ousadia (“audentes fortuna juvat” -  a sorte protege os audazes) (Virg. Aen. 10, 284), o nosso general à paisana, confiando-se à capciosa proteção da santinha do bolso do casaco, escolheu permanecer na margem de cá do nosso rubicão, à espera, quem sabe, de uma providencial canoa ( chalana já não temos) que nos pudesse dar uma boleia.
 

Em vez de lançar o Mendes e o Gonçalves, recorrendo ao pote de fumos para confundir o adversário, o Guedes para romper as linhas de defesa dos flamengos, o nosso general, agarrado à ordem de operações, elaborada nos gabinetes de estado-maior, ficou refém dos seus medos - e o medo de perder é a mais segura garantia de que se perderá mesmo - como se perdeu, malgrado as boas oportunidades de que desfrutámos.

Sim, o que nos faltou foi a ousadia de avançar sobre os que conspiravam tramar-nos, foi, enfim, o nosso atávico encolhimento, a nossa eterna mania de não nos vermos e sentirmos merecedores de ser felizes. E para exorcizar esta nossa ancestral familiaridade com a infelicidade, há sempre um Presidente a apontar o rumo: somos dos melhores e vem aí o mundial, num aceno do placebo de que, por qualquer distração dos deuses, o podermos vir a ganhar.

Meus amigos, na “Isla de la Cartuja” os cartuchos das nossas armas foram de pólvora seca. Faltou-nos usar o lote completo das nossas munições que nem sequer saíram do paiol. E já se viu que, com este general, dificilmente ganharemos a guerra: é urgente que passemos o rubicão e ultrapassemos o nosso proverbial acanhamento.

Como se nos exige na luta contra o covid: o que o momento nos pede é que o enfrentemos na  rua e na normalidade quotidiana das nossas tarefas e não que, apavorados e submetidos aos donos do dinheiro, nos escondamos todos em casa.

A continuarmos amarrados a este padrão comportamental, o nosso belo país mudará de fisionomia e a sua paisagem será usurpada e desfigurada por um sem-fim de painéis solares. O nosso sol, porventura o nosso maior motivo de orgulho, ser-nos-á roubado por espoliadores internacionais.

Tudo porque insistimos em permanecer transidos de medo na margem de cá do rubicão.

Ousemos enfrentar os nossos inimigos - mas comecemos pelos nossos medos e nossos fantasmas.

José Antunes de Sousa

Doutor em Filosofia pela Universidade Católica Portuguesa