Manuel Sérgio: O grande pioneiro! (artigo de José Neto)

Espaço Universidade Manuel Sérgio: O grande pioneiro! (artigo de José Neto)

ESPAÇO UNIVERSIDADE20.04.202201:00

Estimulado pelo meu Mestre José Maria Pedroto que considerava o Prof. Manuel Sérgio um “profeta”, no que respeita às suas ideias sobre o futebol e o treino desportivo, também eu comecei a investigar o que este professor do ISEF e da FMH tinha de inovador, na sua vasta obra. E, sem qualquer petulância o digo: já li boa parte da obra deste autor que, só nestes últimos tempos, parece merecer o aplauso dos estudiosos do “fenómeno desportivo” e em especial das estruturas do poder político. Quero dar, aqui também, especial realce à estrutura diretiva dos treinadores (que no recente fórum o homenagearam), sem deixar de referir o treinador Jorge Jesus que convidou Manuel Sérgio para a seu conselheiro no S.L.Benfica, enquanto tal, com os resultados de sucesso conseguidos e à Universidade Católica Portuguesa que criou a “Cátedra Manuel Sérgio”, sob proposta dos Professores Tolentino Mendonça (hoje, bibliotecário do Papa Francisco) e Alfredo Teixeira.
 

 Saliento, por fim, o Doutor Jorge Araújo que há poucos dias se doutorou em Filosofia, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, uma escola de grande prestígio, pelo valor indiscutível de muitos dos seus professores. Ora, Jorge Araújo fez uma tese de doutoramento, partindo do conceito de Motricidade, em Manuel Sérgio. A este propósito, escreveu Jorge Araújo: que, com a sua tese, Manuel Sérgio não queria hostilizar a Educação Física, enquanto tal, mas proporcionar-lhe “uma necessária mudança de abordagem, mais alargada, mais abrangente, mais integradora e sobretudo multidisciplinar. Os seus textos foram sempre, a este respeito, esclarecedores e mobilizadores. Repetiu vezes sem conta que, sem uma ciência da Motricidade Humana, a Educação Física não teria sentido, sendo igualmente verdadeiro que sem a Educação Física a Ciência da Motricidade Humana não teria história” (Eduardo Jorge Miguez Araújo, “Motricidade e Corpo Expressivo: elementos merleau-pontianos para uma fundamentação do treino na área comportamental”, tese de doutoramento em Filosofia, orientada pelo Professor Doutor Luís António Umbelino e apresentada ao Departamento de Filosofia da Universidade de Coimbra, Julho de 2022, pp. 37/38).
 

Sendo Educação, a Educação Física não abrange tudo o que um paradigma científico pode abranger. Por isso Manuel Sérgio, que foi das primeiras pessoas que, no nosso país, se ocupou da epistemologia, propõe um “corte epistemológico” à crise que a Educação Física então atravessava, para dar-lhe uma ciência autónoma onde a própria Educação Física pudesse fundamentar-se. Só um corporativismo faccioso não vê que a expressão Educação Física não tem futuro, embora o seu passado que nos merece atenção e respeito. Daí a afirmação de Miguel Real: “Tendo em conta ter sido Sílvio Lima o grande filósofo do desporto em Portugal, na primeira metade do século XX, não é exagero postular ser Manuel Sérgio o segundo grande filósofo do desporto, em Portugal” (in Manuel Sérgio, prefácio de “Para um Desporto do Futuro”, IPDJ, 2017, p. 17). Por seu turno, José Eduardo Franco escreve na Introdução a um livro de estudos sobre a tese de Manuel Sérgio: “Manuel Sérgio recuperou e encarnou, nos séculos XX e XXI, o modelo clássico de sábio integral, reafirmado no Renascimento e perdido na deriva especializante do cientismo racionalista – o próprio define o seu empenho intelectual e pedagógico como um neo-humanismo” (in José Eduardo Franco e Miguel Real, coords., “Pensar à Frente: corporeidade, desporto, ética, cultura e cidadania – estudos sobre Manuel Sérgio”, IPDJ, Lisboa, 2021, p.9). Carlos Fiolhais, cientista e filósofo, não tem dúvidas ao escrever: “Na obra de Sérgio (,,,) o leitor ficará a saber que a motricidade humana possui a marca inegável da complexidade. Retirará também a mensagem de que o diálogo interdisciplinar (…) é hoje fonte indispensável de novos saberes” (in op. cit., pp.24/25). Por isso, ele diz que, no desporto de alta competição, não se treinam atletas tão-só, mas também Homens (ou Mulheres) que são atletas. E que só como ciência humana o Desporto deverá estudar-se e praticar-se. Ideias novas decorrentes da sua revolucionária definição de motricidade: “o movimento intencional e solidário da transcendência – transcendência física, intelectual, política e espiritual, dado que, no ser humano, pela “marca inegável da complexidade”, tudo está em tudo. Não é possível um movimento físico sem um correspondente “movimento” intelectual.
 

A tese de Jorge Araújo, aprovada com incomum brilho e louvor, honra-o e honra a Universidade que a fez sua. E porque parte de Manuel Sérgio não esconde, portanto, o pioneirismo deste “velho” professor, no estudo prudente, tolerante e crítico da Educação Física e do Desporto. Segundo Manuel Sérgio, o Desporto é uma das especialidades da Ciência da Motricidade Humana, uma nova ciência humana. E, por isso, não há jogos, há pessoas que jogam, não há remates, há pessoas que rematam, não há fintas, há pessoas que fintam, não há dribles, há pessoas que driblam. Em relação à periodização do treino, refere que não pode haver preparo físico independente do modelo de jogo, justificando a importância de trazer à planificação do treino não apenas a educação de físicos comprovadamente atléticos ou técnicos estruturalmente eficazes, ou táticos substancialmente competentes, pois estamos em confronto com pessoas pelo movimento intencional de transcendência em que o corpo em ato emerge a carne, mas também a paixão, o sangue, o desejo, o prazer, a rebeldia, as emoções, os sentimentos, tudo isto visando a transcendência ou a superação. Daí a fundamentação das primeiras bases teóricas da periodização antropológica e tática que gerou a também explorada com êxitos conseguidos, a “periodização tática”. E, antes de cada treino, o treinador deve fazer a si mesmo esta pergunta: “Qual é o homem (ou a mulher) que eu quero que nasça do treino que vou dar?”. Porque, sem um determinado tipo de homem (ou mulher), eu não terei o jogador (ou a jogadora) que pretendo: forte, corajoso (ou corajosa) capaz de competir com espírito, simultaneamente agressivo e lúdico e fraterno, porque também no desporto despontam aqueles valores, sem os quais impossível se torna viver humanamente.

 E passo agora a palavra ao Doutor Jorge Araújo: “No contexto global de influências sergianas, Merleau-Ponty emergiu como a figura central no meu projeto de refundar a prática do treino comportamental. Também aqui haveria que fazer uma transição semelhante à operada por Manuel Sérgio, no seu campo disciplinar: passar da educação física do comportamento para a filosofia global da motricidade humana corporalizada e em situação” (p. 13). E, em toda a tese do Doutor Jorge Araújo, Merleau-Ponty e Manuel Sérgio serão os inspiradores de uma dissertação que mereceu a mais alta classificação que a Universidade de Coimbra atribui a um doutorando. Estão de parabéns os Doutores Luís António Umbelino (orientador da tese de Jorge Araújo, o maior especialista em Portugal em Maine de Biran e em Merleau-Ponty e um admirador da obra de Manuel Sérgio) e Jorge Araújo. Oxalá que o desporto português veja, neles, os antecipadores de um desporto diferente. Isto é, mais justo e mais humano. E, em Manuel Sérgio, o grande pioneiro. O meu Mestre José Maria Pedroto tinha mesmo razão, quando viu em Manuel Sérgio um “profeta”.  
 

Do Mestre José Maria Pedroto repetidamente ouvia no contexto que iniciámos em Portugal: “olha para o jogo que ele te dirá como deves treinar”.
 

Como do Professor Doutor Manuel Sérgio, que categoricamente nos repete: “olha para a vida que ela te dirá como deves viver e o Desporto não é nada mais do que vida”.
 

Manuel Sérgio que hoje (dia 20 de abril) celebra o seu 89º aniversário, como o próprio refere (O Futebol e Eu, pag.14): “nasci em 20 de abril de 1933, meus pais, transmontanos iletrados (pela injusta imposição de factos que a época reportava). Pela mão de meu pai, soldado da Guarda Nacional Republicana, comecei a ser atraído pelo futebol espetáculo, já que era assíduo espetador do Clube Futebol Os Belenenses e queria que o filho não faltasse à missa, nem ao Futebol dominicais. Nasci e cresci em ambiente de encantadora ternura (deixo aqui, de passagem uma flor à memória dos meus saudosos pais)”. Com 22 anos tinha a 4ª classe e hoje autor de 59 livros publicados, professor catedrático jubilado, com comendas do governo brasileiro, república do Chile e Argentina e pelo governo português, claro está, honnoris causa por várias universidades, viu ser-lhe  atribuída uma cátedra com seu nome pela Universidade Católica “ Desporto e Transcendência”, estudando  o Desporto com base na educação de pessoas no movimento intencional de transcendência e que o corpo dos atuais mais representativos da cultura portuguesa ( doutores Miguel Real, Eduardo Franco, Carlos Fiolhais, Gonçalo Tavares, José Carlos Vasconcelos, etc … ), consideram o corte epistemológico que Manuel Sérgio criou, um dos mais marcantes  acontecimentos na vida cultural portuguesa, e que um dos nossos maiores entre os grandes treinadores portugueses, José Mourinho, campeão dos campeões, jamais esquece de referir no seu ato educativo/formativo/competitivo de excelência ( e que honra também me invade pelo facto de eu ter tido a oportunidade de ter como aluno no Curso de Treinadores do Grau IV UEFA PRO) … 
 

A este propósito, notável é a recente entrevista concedida por José Mourinho ao nosso Ilustre Catedral Dom José Tolentino de Mendonça, conselheiro e bibliotecário do Vaticano e de Sua Santidade Papa Francisco e que está exposta na Revista do Expresso ( 14 de abril 2022) e que num recorte absolutamente conciso, faço anotar: “ O Professor Manuel Sérgio, meu professor do 1º ano na Faculdade de Motricidade Humana, da disciplina Filosofia das Atividades Corporais, que eu até dizia para mim próprio, para que serve isto, quando procurava de forma ávida a aprendizagem e discussão do treino e do alto rendimento? … ao que ele de forma extremamente correta me responde: quem só sabe de Futebol, não percebe nada de Futebol…e daí essa necessidade de refletir na sua doutrina, que representa um processo permanente de aprendizagem…. Mais à frente refere Mourinho: “uma beleza o contributo do jogo para o eixo central do desenvolvimento com base de pela ética se fazer o reconhecimento do outro. A distinção entre superação e transcendência, transporta e estabelece um código duma eficaz operacionalidade do treino para a competição”. E ainda na sua humilde transcrição dum ato de fé: “na transcendência focada na visão doutrinal de Manuel Sérgio, também eu, me permito, quantas vezes, perante o silêncio falar com Deus… e sim, quero manter uma relação íntima com Ele ... quase nos tratamos por Tu …  também muito me revejo no Papa Francisco, pela sua simplicidade, como inspirador junto das pessoas que também faço vida minha” …. Simplesmente notável este traço de identidade dum Treinador eternamente Campeão!...
 

Termino, tal como referi na sala do Senado da Assembleia da República, quando em 29 de março 2017, me confiaram a honra em prestar o meu testemunho sobre a sua pessoa e obra, citando Hegel: “A Ave de Minerva (ave da sabedoria), geralmente levanta voo ao entardecer. Coloco meus olhos no infinito e como é linda a ternura do seu voar, desde a aurora até ao toque das trindades, anunciando o descanso para voltar a renascer, com o meu amado PROFESSOR DOUTOR Manuel Sérgio, este meu “pai de afetos”, que ao longo do tempo mais intensamente vive juntinho ao meu coração, sempre num alerta incandescente “, como uma luz da vela acesa numa noite de escuridão!...

José Neto: Metodólogo em Treino Desportivo; Mestre em Psicologia Desportiva; Doutorado em Ciências do Desporto; Formador de Treinadores F.P.F./U.F.A.; Docente Universitário – Universidade da Maia. Embaixador Nacional do Plano Nacional de Ética e Fair Play no Desporto.