João Marreiros e o Desporto Escolar (artigo de Manuel Sérgio, 308)

Espaço Universidade João Marreiros e o Desporto Escolar (artigo de Manuel Sérgio, 308)

ESPAÇO UNIVERSIDADE08.09.201916:27

No polifacetismo da vida nacional, não são muitos os livros, para o grande público, versando o tema “Desporto Escolar”. E escrito por figura de relevo, em Portugal e Espanha, sobre este mesmo tema. De facto, Doutor Europeu em Rendimento Desportivo, pela Universidade da Extremadura (Espanha), com distinção e louvor por unanimidade; professor associado no Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes; arguente de mestrados e doutoramentos, em Espanha e Portugal; tendo já atribuído diversos pareceres para Doutoramentos Europeus; dedicando especial atenção ao estudo do olimpismo e do desporto escolar, colaborando, frequentemente, na Imprensa, com artigos que constituem um caminho racionalmente inteligente e digno – João Marreiros acaba de publicar, pelas Edições Cosmos (uma Editora que tem História, na História da Cultura, em Portugal) o livro Desporto Escolar – a influência motivacional no contexto da sua prática, a nível Histórico, Jurídico e Político. Como pessoa, é de uma bondade desarmante e de uma exemplar formação moral, sempre renascente, em todas as circunstâncias. Revejo o seu currículo e há, em todo ele, seja o que for que me atrai. Talvez porque se sinta conciliado consigo mesmo e transmita, por isso, a quem o procura uma inalterável pacificação interior. Foi atleta internacional, nas disciplinas de salto em comprimento e triplo-salto, treinador, juiz e árbitro de atletismo e é professor, escritor, colaborador da imprensa, mas nenhuma ambição o domina, nem nenhum constrangimento o submete,  (parece e é, assim o penso) um homem inteiramente livre. Neste seu livro, sobre o desporto escolar, uma preocupação o tomou: “que não é possível haver separação da Educação Física como disciplina curricular do Desporto Escolar, como actividade extra-curricular, pois são dois momentos de um mesmo tempo e espaço. Nas aulas de Educação Física deve iniciar-se o processo de formação desportiva e no Desporto Escolar colocar a prática desportiva ao alcance da maioria dos alunos, de ambos os sexos, de cada turma, por anos de escolaridade, de acordo com as suas capacidades e interesses” (pp. 13/14).

Começa João Marreiros o seu livro, assinalando, com toda a justiça, o pioneirismo da Casa Pia de Lisboa, no nosso país, no desenvolvimento desportivo, em contexto escolar. “Criada a Casa Pia de Lisboa, no reinado de D. Maria I (1734-1816), no contexto dos problemas sociais, decorrentes do terramoto de 1755, que devastou a cidade de Lisboa, foi assim fundada a Casa Pia de Lisboa, por iniciativa do Intendente da Polícia da Corte e do Reino, Diogo Inácio de Pina Manique (1733-1805), com a sua inauguração, no dia 3 de Julho de 1780 e efetiva abertura, em 29 de Outubro desse mesmo ano, provisoriamente no Castelo de S. Jorge. A instituição, de ajuda social, recebia crianças órfãs e abandonadas, além de mendigos e prostitutas, em sectores diferenciados (…). A prática do Desporto, na Casa Pia, desempenhava, nos alunos, um papel altamente motivador. Era vivido sempre com muita alegria, era um alfobre de atletas e uma escola perfeita de iniciação para qualquer modalidade desportiva” (p. 17). O Desporto é uma árvore que vinga ou definha, mediante uma trama de fatores que lhe apontam um destino e lhe anunciam um rosto. E, na Casa Pia de Lisboa, desde 1782, ano em que a Educação Física entrou de ser ministrada, nesta instituição, nunca ao Desporto faltou espaço para desenvolver-se e estudar-se. Será de referir que, em 1820, foi a Academia Real das Ciências que, após uma densa e labiríntica pesquisa, elaborou o programa escolar desta instituição e propôs que se ensaiasse, na Casa Pia, uma Escola Nacional de Educação Física, ideia que não se concretizaria. Só em 1833 se realizou a transferência da Casa Pia do Convento do Desterro, para o Mosteiro dos Jerónimos, onde o recreio dos alunos se situava, em amplos claustros, os quais permitiam também a prática de alguns jogos. Um ano depois, aproveitando os largos e longos espaços do Mosteiro dos Jerónimos, nele se criou o primeiro Ginásio de que há conhecimento, em Portugal. Em 1836, de acordo com o paradigma biomédico, edita-se o primeiro livro de Educação Física, em língua portuguesa.  E, entre 1833 e 1855, a Casa Pia iniciou, no nosso país, o ensino da ginástica, como matéria escolar.

Saltando sobre datas, com acontecimentos de assinalável relevo e a soma de circunstâncias, experiências e motivações confluentes que os originaram, realcemos agora, o ano de 1905 – o ano em que o Governo decretou a obrigatoriedade da Educação Física, nos liceus. Pelo Decreto 21106, de 16 de Abril de 1932, o Estado Novo, reacionário até ao tutano, proibiu o Desporto, nas Escolas Públicas. Em 1936, o Decreto-Lei nº. 26611 institui a Organização Nacional da Mocidade Portuguesa. Quatro anos depois, o Decreto-Lei 30279, de 23 de Janeiro cria o Instituto Nacional de Educação Física. O artº. 3º. deste diploma determina que “estabelecer-se-á um regime de efectiva colaboração entre o INEF e a Mocidade Portuguesa”.  Em 10 de Junho de 1944, realizou-se a inauguração oficial do Estádio Nacional, com a presença do Presidente da República, general António Óscar de Fragoso Carmona e do Presidente do Conselho de Ministros, Doutor António de Oliveira Salazar. A influência da Revolução dos Cravos, desaparecidas as razões de constrangimentos vários, típicos de uma ditadura, descobre-se no Decreto-Lei 694/74, de 5 de Dezembro: “Pelo Decreto-Lei nº. 82/73 foi definido um novo estatuto da Direcção-Geral da Educação Física e Desportos, que passou a ter poderes orientadores sobre o ensino da educação física e sobre o desporto escolar. Este estatuto repetia  uma experiência já tentada, através da Mocidade Portuguesa e cujos resultados se podem considerar catastróficos”. A História atravessa o Desporto (e o Desporto Escolar) com um impetuoso caudal de interferências e, nos anos letivos de 2007/2008 e 2008/2009 “apareceu, pela primeira vez, um Programa Bianual para o Desporto Escolar. No ano de 2008/2009, o Ano Escolar foi tornado obrigatório, em todos os estabelecimentos de Ensino Básico e Secundário, com adesão voluntária dos alunos. Em 14 de Julho de 2009, o Secretário de Estado da Educação aprovou, pela primeira vez, um Programa do Desporto Escolar, para o quadriénio 2009-2013” (p.99).

A vagueza do que fica escrito, nesta minha “crítica”, não reflete a competência indesmentível do Doutor João Marreiros, nem a colmeia viva e bem orientada, que é o desporto escolar, no nosso país. Por outro lado, não sei colher, por ignorância minha, o que, sobre este assunto, os dias (e os homens) nos têm oferecido de mais significante. Aceito todas as críticas com disciplinada humildade e reconheço que o autor deste livro merecia uma análise de conteúdo mais aprimorado do que o meu subjetivismo e a minha pobre retórica. No entanto, porque conheço o João Marreiros, em números redondos, há 40 anos, posso escrever, sem receio que, neste livro, o autor forma, com o homem, uma peça inteira. E portanto esta é uma obra plasmada numa longa e séria experiência e numa ética (e incluo, aqui, a ética do conhecimento)  que lhe conferem vitalidade, verdade, sólida fundamentação. Este é portanto um livro que merece entrar na biblioteca dos cursos superiores de Desporto, dos que se ocupam, profissionalmente do Desporto Escolar ou o querem estudar, por qualquer outro motivo. Um ponto me parece indiscutível: o Desporto Escolar, em Portugal, já tem, através de João Marreiros, a  síntese necessária para nela poder encontrar-se as causas e as consequências da sua existência e do seu desenvolvimento. E tudo se realizou à luz da filosofia que estas palavras expressam e se encontram gravadas no portal do Desporto Escolar: “É missão do Desporto Escolar contribuir para a formação integral e a realização pessoal de cada aluno, cumprindo o compromisso com o que se consagra, no artigo 79 da Constituição da República Portuguesa: todos têm direito à cultura física e ao desporto”.

A partir da página 72, João Marreiros procura relatar-nos o que tem sido o desporto escolar, depois do “25 de Abril de 1974”. E centremo-nos no XXI Governo Constitucional, onde o Ministro da Educação e do Desporto é o Doutor Tiago Brandão Rodrigues. “O governo propôs uma nova agenda para o desporto nacional, capaz de dar um novo impulso ao desenvolvimento do desporto e aumentar significativamente a sua prática (…). Este modelo de desenvolvimento do desporto tem por objetivos promover mais e melhor desporto para mais cidadãos, começando a formação na escola, prosseguindo o desenvolvimento do desporto, através do movimento associativo com base nos clubes e federações e generalizando a prática desportiva,  afirma que turismo e do desenvolvimento e ordenamento do território (…). Para o efeito, o governo irá articular a política desportiva com a Escola, reforçando a educação física e a atividade desportiva nas escolas e estabelecimentos de ensino superior, compatibilizando a atividade desportiva com o percurso escolar e académico e valorizando e apoiando o ressurgimento de um quadro de competições desportivas nas escolas”.  Embora exposto muito sumariamente, é de realçar a Parte V do livro, intitulada “A Motivação no Contexto da Prática Desportiva”, enunciando as principais teorias que neste assunto procuram adentrar-se. E, passando da teoria à prática, não se limitando à perceção dominante em círculos restritos e fechados, apresenta as suas próprias ideias sobre a motivação e as de treinadores conhecidos, como o José Mourinho e o Tomaz Morais e ainda as doutros autores de relevantes méritos científicos. Apresenta ainda a legislação específica, em Portugal e as necessárias referências bibliográficas. Konstantin Simonov afirma que “a vida do escritor é sempre, no fim de contas, a primeira fonte da sua obra”. Poderíamos dizer o mesmo deste livro, de que é autor um licenciado, mestre e doutor de muita prática, na realidade palpitante do desporto, e de muito estudo no que de mais atual se encontra, na vasta área da motricidade humana. Enfim, um livro que apetece saudar, um autor que apetece aplaudir e, no meu caso, um amigo que apetece abraçar.   

Manuel Sérgio é professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto