Espaço Universidade A tese de doutoramento do Doutor Jorge Araújo (artigo de Manuel Sérgio, 378)
Arredado da atualidade de uma guerra que um tal Putin desencadeou na Europa; depois de saber, com alegria, que o JL (Jornal de Letras. Artes e Ideias) celebrava o seu quadragésimo segundo aniversário de uma vida ao serviço da Literatura e da Filosofia e das Artes (e da Cultura afinal), em toda a lusofonia; e, embora a minha insuficiência cardíaca – lia, no conforto do meu lar, uma entrevista do poeta Nuno Júdice, precisamente no JL, onde recortei o seguinte: “Era impossível não ter (influência da guerra colonial). Mas não pretendia fazer uma poesia militante, que outros tinham feito e faziam com eficácia. O que pretendi foi trazer a revolução para o plano da própria invenção poética”.
Se é verdade que a responsabilidade social e política não é incindível da responsabilidade de um escritor - enquanto especialista de uma área do conhecimento ele tem a fazer também um trabalho epistemológico que pretenda mostrar que em tudo o que escreve há uma atitude científica, por oposição a uma atitude pré-científica. Creio que é isto mesmo que Gaston Bachelard o diz, no seu Le Rationalisme Appliqué, cap. VI. Esta vigilância epistemológica, na sua profissão, é claramente visível na tese de doutoramento em Filosofia, que o Doutor Jorge Araújo defendeu, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e que mereceu do júri o reconhecimento público de que se trata de uma dissertação de excecional qualidade. Lê-se, de facto, esta obra com encanto porque, para além da erudição, que é copiosa e bem fundamentada, se dilui numa escrita cristalina, acessível mesmo aos leigos na matéria em questão. Com efeito, logo no capítulo primeiro Jorge Araújo não se limita a rejeitar o fisiologismo da educação física, que anteriormente estudara, e escreve: “Este paradigma foi profundamente abalado pela obra filosófica de Manuel Sérgio (…). Manuel Sérgio defendeu uma nova noção de motricidade e de comportamento, um conceito complexo de corpo, retirado da moderna fenomenologia. No centro destas suas ideias, surgia a tese de que a verdadeira referência do comportamento não deveria ser o corpo, entendido como referencial exclusivamente fisicalista, mas sim a pessoa integral, desvendada além de todos os dualismos” (Eduardo Jorge Miguez Araújo, Motricidade e Corpo Expressivo – elementos merleau-pontianos para uma fundamentação do treino na área comportamental, Tese de doutoramento em Filosofia, orientada pelo Senhor Professor Luís António Umbelino e apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Julho de 2021, pp. 5/6).
E continua Jorge Araújo, depois de citar alguns livros de que é autor: “Um longo percurso, no final do qual verifiquei que as questões fundamentais não tinham ainda sido por mim formuladas; e que, por essa razão, estava longe de poder enfrentar as respostas mais radicais, mais profundas e complexas: o que é o comportamento? Será o comportamento uma realidade estritamente neurobiológica? Encontra-se a sua explicação no cérebro ou, ao contrário, é o cérebro já sempre uma resposta ou resultado do comportamento? Que corpo é o corpo do comportamento humano? O que significa intervir sobre o comportamento? Sobre o que se intervém, quando de afirma treinar comportamentos? No momento em que formulei estas questões, constatei os limites das minhas abordagens e compreendi, finalmente, a que ponto havia sido importante o conjunto das propostas filosóficas de Manuel Sérgio: ao propor-nos refundar a ciência da educação física como ciência do homem integral, apontava-nos o caminho para uma filosofia do comportamento integral (…). Entre o conjunto de autores com os quais Manuel Sérgio sustentou a sua investigação, alguns pareciam ocupar um lugar de fundamento, como se as suas doutrinas marcassem ponto de inflexão e fundamentação, a partir das quais se tornava forçosa uma nova forma de pensar (,,,). Maurice Merleau-Ponty foi um deles (…). Nos textos deste autor, Manuel Sérgio havia encontrado uma conceção original, inovadora e incontornável de motricidade, capaz de permitir pensar todo um novo paradigma de pensamento sobre o fenómeno do comportamento humano” (p. 12). E Jorge Araújo, na sua dissertação, foi bem além (inteligência brilhante que é) ontologicamente, do ponto onde eu chegara, do ponto de vista epistemológico. Digo-o com humildade e alegria: com humildade, porque sei dos meus limites e muito aprendi na tese de doutoramento do Doutor Jorge Araújo; com alegria, porque a minha tese não foi uma força mental de bloqueio, como o proclamou um certo analfabetismo generalizado, no que à epistemologia diz respeito…
“Mas (pergunta Jorge Araújo, na sua tese, que é, sem favor, marco incontornável do pensamento do desporto, em Portugal e… não só, no meu entender) que é afinal treinar de um ponto de vista comportamental?”. E responde imediatamente, com afoiteza: “Quer na família ou na escola, a um nível desportivo ou empresarial, treinar de um ponto de vista comportamental corresponde a um conjunto de ações e estratégias que visam melhorar competências, modificar e diferenciar atitudes e comportamentos, no sentido do objetivo comum, contido na prática social de determinados princípios e valores. Trata-se de uma atividade que pressupõe informação e formação contínuas e que se pretende organizar como referência para orientar comportamentos perante situações esperadas, mas também – e talvez fundamentalmente – face a situações e contextos inesperados e ou adversos. O treino comportamental, enquanto prática, pode igualmente entender-se como exercício – ou experiência – que desenvolve respostas adequadas a solicitações variadas, seja esse meio genericamente entendido em termos quotidianos, em termos de prática desportiva, ou em termos de desempenho profissional em contexto empresarial” (p. 21). As reflexões de Jorge Araújo sobre o treino comportamental levam-no a erguer mais uma interrogação: “Qual é afinal o grande desafio com que se deparam os treinadores e, nomeadamente, os treinadores comportamentais? (…). Sabemos que a figura do treinador pode ser, só por si, importante. A sua reputação, os seus sucessos, a afirmação social, desportiva ou empresarial já alcançada, permitem-lhe, ao falar às equipas, aos jogadores, ou aos quadros da empresa, uma repercussão mobilizadora da respetiva motivação (…). E existe a palavra também. E o sentido do que se transmite, que não deve apenas influenciar e persuadir, mas tocar emocionalmente e transformar” (p. 29). E, depois de manifestar plena adesão ao paradigma da motricidade que Manuel Sérgio criou e adiantou, dando especial realce à frase deste autor que “no movimento intencional, específico da motricidade humana, há toda a dimensão do humano” – como assertor cauteloso e orientando a pesquisa para a síntese fundamental, Jorge Araújo, atento e perspicaz, escreve um novo capítulo que intitula “O novo paradigma da motricidade”.
E abre este capítulo com uma frase de Manuel Sérgio, no livro Alguns olhares sobre o corpo, editado pelo Instituto Piaget, “No movimento intencional específico da motricidade humana, há toda a dimensão do humano” (p. 109). E cita Trovão do Rosário, no prefácio do livro de Manuel Sérgio, intitulado Um corte epistemológico – da Educação Física à Motricidade Humana, editado também pelo Instituto Piaget: “Manuel Sérgio anuncia a inevitável, a incontornável mudança de paradigma, cumprindo o dever de estar à altura da cultura do seu tempo, diz com firmeza, mas sem arrogância, que a mudança de paradigma criou um corte epistemológico e da educação física passou à motricidade humana” (p. 10). E qual a razão primeira (digo eu, agora) do corte epistemológico? Porque um mundo novo entrou de nascer: o mundo rural durou sete mil anos, o mundo industrial não foi além dos duzentos anos. E quais os traços essenciais da sociedade pós-industrial? Vejamos a tal propósito o que nos diz o filósofo italiano Domenico De Masi, no seu livro O Futuro Chegou (Casa da Palavra Produção Editorial, Rio de Janeiro, 2014): “Se a sociedade industrial era centrada na produção de bens materiais, produzidos em série, a sociedade pós-industrial é centrada na produção de bens imateriais, como os serviços, as informações, os símbolos, os valores, a estética. Os fatores principais dessa mudança foram o progresso tecnológico, o desenvolvimento organizativo, a globalização, duas guerras mundiais, as revoluções soviética e chinesa, a mídia de massa, a difusão da escolarização” (p. 538). E, no meu modesto entender, o nascimento e o uso sistemático da dúvida. Só quem duvida pode chegar a um patamar mais alto de conhecimento. E “os atores centrais que na sociedade industrial eram os homens, os empreendedores, os operários, os sindicalistas e os militares, na sociedade pós-industrial são as mulheres, os cientistas, os técnicos, os artistas, os gestores de informação, os intelectuais, os trabalhadores do lazer. A autonomia da esfera política é cada vez mais influenciada pelo sistema financeiro e pela mídia” (p. 538 ss.). E são outros os valores emergentes, ainda segundo Domenico De Masi: “A intelectualização da vida e a telemática” e, daí, “a necessidade de passar continuamente do nível tangível para o nível virtual e de desempenhar quaisquer tarefas em qualquer momento e em qualquer lugar. Resolvidas as exigências primárias, duplicada em apenas duas gerações a longevidade, secularizada a relação do homem com o além, mira-se aqui e agora a qualidade de vida como exigência irrenunciável para conferir a uma existência mais longa um sentido mais rico e profundo” (p.545).
E esclarece Jorge Araújo: “O comportamento – eis o que pretendemos estudar aqui – é a capacidade experimental que tem na sua base um corpo vivido: um sistema sensório motor (visual, vestibular, propriocetivo, cinestésico), regulado inconscientemente e sobre o qual se estrutura uma corporeidade atual em que assentam as decisões fundamentais do nosso quotidiano” (p. 45). E cita o Doutor Luís Umbelino, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e seu orientador da tese de doutoramento: “Enquanto veículo do ser no mundo, o corpo é originariamente exercido, mas não percebido, como objeto intencional. De algum modo permanece como que fenomenologicamente escondido, no seu perseverar dinâmico, desse modo permitindo visar imediatamente as tarefas e comportamentos a realizar. Dir-se-ia que o corpo, enquanto vivido, se percebe apenas a experienciar, a percecionar, a pertencer por conivência (e nisto será essencialmente distinto dos restantes objetos do mundo) e não como algo estritamente experienciado ou a experienciar, nunca como algo concebido ou a conceber expressamente (op. cit.p, 147). E acentua assim, de novo, na citação de Luís Umbelino, o radical da sua tese. E de que eu me aproximei, dando à motricidade a definição seguinte: “o movimento intencional e solidário da transcendência, ou superação”. Mas voltemos a Jorge Araújo: “Para Merleau-Ponty, tanto o nosso comportamento é resultado de influências externas como também e, em simultâneo, tais influências só se tornam possíveis, através da total abertura e conivência com o que o nosso corpo vivido se disponibiliza para o que o rodeia. Num claro contraponto em relação ao naturalismo científico vigente (…) Merleau-Ponty argumenta que constituímos o nosso próprio meio ambiente, a partir da nossa ação e movimentos, sendo que estes são, por seu turno, já sempre trabalhados pelas condições e referências do meio envolvente (…). Para Merleau-Ponty, a perceção é assim a capacidade de atribuir significado às pessoas e às coisas do mundo e de as viver enquanto realidades (…). A perceção resume a dimensão de entrelaçamento entre corpo e mundo” (pp. 50 ss.). E remata assim Jorge Araújo, na sua tese: “Por isso, a noção de motricidade será central no contexto da requerida aproximação fenomenológica” (p. 54).
Na leitura da obra do Padre Manuel Antunes, antigo professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, encontramos um ensaio sobre a “Significação de M.Merleau-Ponty” que levanta uma interrogação: “Que é a percepção para Merleau-Ponty? A forma de conhecimento, por excelência: a que me revela, na minha realidade de corpo consciente, a que me situa na minha condição de ser orientado para o mundo e no mundo inserto, a que me dá o espaço, que só ele é humano, de um de nós (…). O primado da percepção sobre a razão e o entendimento, implica, em Merleau Ponty, uma concepção da filosofia diferente da concepção tradicional (…). Por outras palavras: filosofia e fenomenologia equivalem-se” (Manuel Antunes, “Grandes Contemporâneos”, Editorial Verbo, Lisboa, 1973, p- 175). E assim desponta “a coexistência do homem e da natureza, do homem com o homem, do nocional e do real, comunicando-se no mundo e no espaço intersubjectivo” (op.cit,, pp- 179/80). No entender de Merleau-Ponty, portanto. diz-nos Jorge Araújo: “somos percepção, ou seja, o que é o mesmo, somos primitivamente, uma verdadeira consciência corporalizada, aberta ao mundo”. No entanto, (…) o corpo de que aqui se trata é o corpo vivido, ou corpo próprio. É este o corpo percetivo e motor: o corpo do comportamento” ( Jorge Araújo, op. cit,, p. 74/5). Acompanha-nos, depois, Jorge Araújo a uma visita ao livro de Renaud Barbaras, “Introdución a una Fenomenologia da la Vida” (Madrid; Ediciones Encuentro, 2013). Precisamente um autor que nos diz que só conhecemos aquilo que vivemos: “Não é a análise molecular, mas sim a nossa experiência que nos permite distinguir um gesto de preensão, um comportamento de fuga, ou uma atitude de repouso (…). Não é na biologia onde temos de investigar o que é a vida, já que simplesmente esta não é o seu objeto. A biologia não fala da vida, senão do modo de funcionamento dos organismos reconhecidos como vivos” (p. 54). “A Verdade é o Todo” já o ensinava o Hegel da “Ciência da Lógica”. Ora, a biologia, indispensável ao estudo do ser humano, não é o todo que o ser humano é. “Não é porque temos um corpo. pelo qual pertencemos ao mundo – que somos viventes; pelo contrário, é porque somos viventes (…) que pertencemos ao mundo e possuímos pois um corpo” (Barbaras, op. cit., p. 135).
E porque, no ser humano, o todo está em tudo, Barbaras introduz, no estudo do corpo, dois novos conceitos: “o de Desejo, entendido em termos transcendentais, como fenomenologia em que adquire sentido o poder fenomizador da vida, e o da Morte, pela limitação que constitui para qualquer ser humano”. Mas, dizer que o ser vivo é mortal é dizer que a morte é uma sua possibilidade (…). Para Barbaras, a mortalidade não é algo que esteja no ponto de chagada da vida, mas sim no seu ponto de partida” (Jorge Araújo, op. cit. p. 86). Aqui, parece-me oportuno levantar a interrogação: ponto de partida, para onde?...”. A perceção, para Merleau-Ponty, é a forma do conhecimento, por excelência: a que me revela na minha realidade de corpo consciente, a que me situa na minha condição de ser orientado para o mundo. Para mim, o mundo não é um caos, é um “cosmos” e, portanto, a cosmogénese, a biogénese e a antropogénese parecem-me sabiamente dirigidas à cristogénese (como quer Teilhard de Chardin). E, com a cristogénese o espírito humano não é um epifenómeno da matéria, mas a sua realização última. O ser humano não sobe ao tablado da História, por acaso ou necessidade - o seu espírito leva-o àquele Ser que pode explicar o sentido de um mundo que, sem Ele, parece um absurdo.
No entanto, Jorge Araújo não esconde que, para Barbaras, “o movimento é um modo de relação com o mundo e devemos considerar-nos sujeitos percetivos, caracterizados existencialmente como movimento (a nossa perceção é essencialmente movimento), aproximando-se assim da filosofia de Merleau-Ponty que é, sem sombra de dúvidas, “uma filosofia da perceção” (Renaud Barbaras, “Merleau-Ponty”, Philo-philosophes, Elipses, 1997, p. 11). Para evitar o excesso de citações, digamos que desponta em Merleau-Ponty um corte epistemológico, visando uma mudança de paradigma: a passagem do racionalismo a uma filosofia em que o corpo e a motricidade surgem com lugar central e verdadeiramente fundante. Motricidade? Vejamos o que nos diz Merleau-Ponty: “A motricidade não é a simples consciência das minhas trocas de lugar presentes ou próximas, para se tornar a função corporal que, em cada momento, estabelece determinados padrões de grandeza, para amplitude variável do meu ser no mundo” (Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception, Gallmard, Paris, 1945 pp. 254, 255). E Jorge Araújo aduz, interpretando Merleau-Ponty “Ao percebermos algo, porque sofremos influências várias, misturamos subjetivamente o individual e o cultural, num verdadeiro contágio cultural e social, que torna o nosso corpo, também ele, cultura”. E diz mais Jorge Araújo: “Perceção e movimento são dois lados do mesmo fenómeno” (p 119).
Esta é, de facto, uma tese notável, até pela sua natureza de ideias, numa literatura não muito rica em tal sentido. E que pode enriquecer-se se entender, de uma vez por todas, que” de acordo com Merleau-Ponty, a motricidade é a base da nossa capacidade prática de corresponder às sugestões do mundo e, neste sentido, de concretizar relações espaciais de situação (,,,), Sempre que nos movimentamos, estamos perante uma circularidade entre o que acontece no espaço em que nos inserimos e as reações do nosso próprio corpo (…). E assim a motricidade e a espacialidade são elementos constitutivos do fenómeno do comportamento que, por seu turno, resume então a dimensão mais primitiva do modo corporal de ser no mundo (p. 125). Deste modo, “o corpo é o plano mais primitivo da consciência” (p- 135). Por isso, Merleau-Ponty, ao entender a linguagem como movimento expressivo e não um mero ato mecânico regido por leis fisiológicas ou químicas, reforçou a importância de uma comunicação expressa através do corpo todo e assim prolongando a nossa abertura aos outros e ao mundo exterior” (p. 144).
De facto, pela linguagem, abrimo-nos ao mundo e o mundo abre-se a nós; pela linguagem, argumentamos, perguntamos, amamos, convivemos, criamos ideologias e fazemos política. Tudo isto, em interação e em intersubjetividade corporais. E, como corpo que são, perceção verdadeira – perceção evidente! O comportamento das pessoas, no entanto, não depende apenas dos genes, é multifatorial, supõe a complexidade da vida humana. Depois, Jorge Araújo dá um exemplo colhido na sua atividade profissional: “Pergunte-se o que é um campo de basquete? A verdade é que não há um campo de basquetebol em abstrato; nem existe objetivamente um campo de basquete (que não é, de facto, a realidade objetiva de um recinto ou local). A realidade de um campo de basquetebol só existe na maneira como aparece o espaço do jogo, nos movimentos vividos e espacializados dos jogadores enquanto jogam” (p. 169). E Jorge Araújo continua, como treinador diligente e lúcido de basquetebol: O mesmo sucede quando um jogador de basquetebol corre no campo, a caminho do cesto. Para Merleau-Ponty, naquele momento, o que lhe interessa é a “realidade da experiência vivida”, contida naquele movimento. A experiência de um dinamismo que se completa com o espaço do campo em que o jogador se molda a tudo o que o envolve e, por sua vez, àquilo que o envolve se molda ao jogador. Fenómeno que Merleau-Ponty chamou “incorporação”, pois o jogador de basquetebol joga com o seu corpo vivido, num campo incorporado” (pp. 169/170).
Como se treina tal circunstância? Como se treina o vivido do Corpo”? Eis a dificuldade “responde Jorge Araújo”. E aborda assim o tema; “Talvez treinando para o hábito, para a familiarização com os objetos (a bola… a caneta…) e os espaços. Mas como treinar aquilo que o corpo vivido sabe fazer melhor e mais cedo do que qualquer “sujeito pensante”? Quando o jogador executa algo excelente de modo impensado, tal significa que já tem incorporada essa execução, melhor dizendo esse hábito e que nada o vai “desfocar”, pois está no fundo treinado a mover-se “no seu corpo vivido”. Este é um aspeto complexo. Talvez se deva reconhecer que não há porventura receitas definitivas para o treino comportamental. “Estar no mundo como corpo vivido” não é estar no mundo como coisa, mas sim estar no mundo como potência, como força de significação das coisas e do mundo. Diríamos que “o modo de estar” altera a realidade, e as circunstâncias de qualquer situação fazem oscilar o vivido do corpo em igual medida. Se “receitas” existirem para o treino comportamental - quer a nível empresarial ou desportivo – essas apenas poderão ser traduzidas do seguinte modo: preocupação pelo modo como pessoas e ambientes mutuamente se influenciam. No mundo empresarial, a persistência em designar pessoas como “Recursos Humanos”, equiparando-os afinal a qualquer outro tipo de recurso, como sejam computadores, móveis, etc., é o princípio de muitos equívocos” (pp- 170/171)
E toca depois o problema, sempre atual, da intersubjetividade: “O nosso comportamento completa-se (…) no comportamento dos outros e na base do comportamento está o corpo vivido, que inicia as “significações do mundo”. O outro aparece, portanto, sobre a circunstância de um envolvimento intercorporal (…). A experiência percetiva tem, portanto, duas dimensões; uma subjetiva, quando focada no exterior de modo intencional e significante, coexistindo com o mundo visível; outra, reflexiva, quando nos interrogamos acerca do que aprendemos, através das experiências vividas” (171). Mas não alcançaremos nunca o todo. A Genética, por exemplo, “ajudará a uma melhor compreensão da génese dos comportamentos em bases genéticas, mas deixará de fora um espaço de incertezas enormes” (Jorge Marques, “Vida e Gesdtão”, Kelly, Lisboa, 2014, p, 148).
Na conclusão da tese que, na esteira de Merleau-Ponty, sempre procurou fugir ao acanhado empirismo da universidade pombalina, Jorge Araújo afirma, sem quaisquer problemas; “Tratou-se aqui de procurar repensar filosoficamente a ciência do treino, na área comportamental, como “ciência do homem integral”, como sugerida por Manuel Sérgio. O caminho para uma “filosofia do comportamento integral” foi aberto por nós, nesta tese, em diálogo com as descrições fenomenológicas mais profundas dos fenómenos do comportamento vivido, entendido como relação, conivência pertença mundana” (p. 179). Mas… o que é um texto filosófico? Vejamos o que nos diz, a este respeito, Maurice Merleau-Ponty: “O filósofo reconheceu-se (através dos seus textos) pela posse inseparável do gosto da evidência e do sentido da ambiguidade. Quando se limita a suportar a ambiguidade, esta chama-se equívoco. Para os maiores filósofos, a ambiguidade torna-se tema, contribui para fundar certezas, em vez de as pôr em causa. É preciso, pois, distinguir entre a má e a boa ambiguidade. Sempre aconteceu que, mesmo aqueles que pretenderam construir uma filosofia, absolutamente positiva, só conseguiram ser filósofos na medida em que, simultaneamente, se recusaram o direito de se instalar no saber absoluto – que ensinaram, não este saber absoluto. mas, quando muito, como dia Kierkegaard, uma relação absoluta entre o saber e nós” (Maurice Merleau-Ponty, “Elogio da Filosofia”, Guimarães, Lisboa, 1986, p 10).
O filósofo, portanto, jamais proclama a posse da verdade absoluta, pois no que diz e faz há sempre uma certa ambiguidade – uma certa ambiguidade que é um apelo à consciência de que a busca não acaba nunca. Por isso, assim termina Jorge Araújo a dissertação da sua tese; “Concluindo: o comportamento aqui investigado tem um profundo sentido e significação humanizantes; sobre a base de uma presença concreta no mundo, que é relação de pertença e não de posse, pode fundar-se uma nova filosofia do comportamento, no contexto da qual se poderá pensar o treino comportamental, como atenção à experiência vivencial entre o corpo próprio e o meio concreto que completa a respetiva situação. Podemos afirmar assim que é por tal circunstância relacional que somos “seres do mundo”, expostos aos que connosco se relacionam e a uma interação cultural constante, numa mistura continuada entre o subjetivo, o social e o cultural, (Jorge Araújo, op. cit., p. 179/180). Uma tese notável, de um humanismo latente ou manifesto. de um nome grande da história do nosso desporto. Uma tese que honra o Doutor Jorge Araújo e o Doutor Luís Umbelino (professor ilustre da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e o sábio orientador desta dissertação) e, afinal, a própria Universidade de Coimbra, “Alma Mater” da Ciência e da Cultura, em Portugal.
Manuel Sérgio é professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto