Espaço Universidade O espectáculo - a variável esquecida (IV) (artigo de Armando Neves dos Inocentes, 17)

ESPAÇO UNIVERSIDADE22.10.201900:46

Terminamos a abordagem desta variável esquecida – o espectáculo –inserindo-a num sistema muito poucas vezes abordado mas que permitirá compreendermos melhor a sua função.

Se a mais antiga referência escrita sobre uma competição data de 776 a.C., quer se desenrolasse no ginásio, na palestra, no estádio ou no hipódromo, em Olímpia, a mesma já implicava a presença de espectadores. Se o desporto sem competição não é desporto, também poderemos afirmar que o desporto sem espectáculo não é desporto. Este espectáculo evoluiu ao longo dos séculos e hoje já não é aquele que se encontrava presente na Grécia Antiga, na época vitoriana ou na modernidade. Em qualquer uma das épocas históricas o homem teve as suas manifestações corporais, atléticas e desportivas utilizadas para outros fins que não a prática ou a competição em si.

                             

Actualmente verificamos a existência de um fosso enorme entre a prática antiga e o desporto pós-moderno, ao mesmo tempo que constatamos também a existência hoje em dia de um outro fosso entre os ideais proclamados pelo desporto e a realidade quotidiana que apresenta no espectáculo a sua face visível.

Atribuem-se ao desporto finalidades de grandes dimensões (valores) que não correspondem em nada à prática que é realizada quotidianamente mas que está inserida num meio determinado pela mercantilização num sistema capitalista.

O desporto apresenta-nos um marketing com linguagens de sedução e uma publicidade com imagens de tentação porque… o espectáculo desportivo é negócio. Não só o negócio da venda de bilhetes, de lugares cativos, de venda de camisolas e cachecóis, dos direitos televisivos, da transferência de jogadores, do naming dos estádios… Repare-se que no futebol já tivemos a Liga Sagres e a Liga Vitalis, a Liga Zon Sagres e a Liga Orangina, a Liga CTT, NOS ou MEO, a cerveja oficial do râguebi português – a Super Bock – patrocinou a selecção nacional designando-a por All-Bocks, enquanto o futebol se fica pela Sagres... e pela “Fome de Vencer” de um grande grupo económico onde efectuamos compras todos os dias.

Temos as antevisões dos jogos na televisão, as entrevistas pré e pós desafios de futebol em que se exprimem dirigentes e jogadores, muitos sem nada dizerem de proveitoso… Estas entrevistas em directo são obrigatórias antes e depois das transmissões dos eventos porque não se podem realizar sem apresentar alguém (dirigente, treinador ou jogador/atleta), embora o mais importante não seja esse alguém ou o que diz mas sim o que se encontra por detrás dele – o painel publicitário que subliminarmente faz entrar no espírito dos telespectadores dúzias e dúzias de logotipos e marcas. E aqui reside o grande cerne da questão: o espectáculo desportivo é necessário para nos levar a consumir os produtos cujas imagens são veiculadas nos painéis que circundam o campo, nos outdoors, nos painéis por detrás dos pódios, nas costas das camisolas… tudo isso porque conscientemente não damos conta mas o nosso cérebro capta e regista.

Graças a quem? Graças ao desportista – ao seu corpo e também à sua mente. Abusa-se da saúde do desportista e molda-se, formata-se, a sua mentalidade. Resumindo: manipula-se o ser humano. Sempre com o objectivo do dinheiro. Ou de alguns minutos em que o humano se transforma em deus – mas sempre servindo alguém, em nome de uma imagem, em nome de uma marca, em nome de um logotipo.

Tudo isto é depois repetido até à exaustão, expandido, mais que divulgado (sempre com as tais imagens subliminares) em três ou quatro canais em horário nobre por pessoas que pouco ou nada pensam sobre desporto (o que é diferente de pouco ou nada sabem de desporto). A imprensa escrita colabora igualmente sob a forma de imagens, não havendo notícia que não tenha a sua.

O espectáculo é um factor tão interveniente no próprio terreno de jogo que numa partida de futebol realizada à porta fechada há uns anos e posteriormente transmitida pela televisão mostrava-nos que quando um golo era marcado nem os próprio jogadores festejavam.

Actualmente o espectáculo desportivo não pretende regularizar os comportamentos em sociedade pois a teoria da válvula de escape e a teoria catártica encontram-se realmente em desuso (comprovado já por estudos científicos)… Governantes, executivos, decisores e dirigentes desportivos apresentam uma maior preocupação com o direito como sendo a forma específica mais importante e eficaz para o controle social nas sociedades. O aumento progressivo de leis, de regulamentações, de sanções, de comissões de estudo, análise e/ou prevenção assim o demonstram…

Jean-Marie Brohm, para quem o desporto é um sub-sistema do sistema capitalista, mostra-nos que a história do desporto se inscreve totalmente no desenvolvimento do capitalismo e afirma mesmo que, sendo o espectáculo desportivo o ópio do povo, “o ópio é não somente a ilusão da comunidade, mas sobretudo a comunidade da ilusão” (1).

Num artigo de 2013, intitulado “Le spectacle sportif, une aliénation de masse” (2), este sociólogo apresenta o desporto actual como sendo a principal indústria do entretenimento e simultaneamente uma economia política real da cretinização das massas, defendendo que uma outra mistificação, ainda mais escandalosa, é a que sugere que o desporto é um factor de cidadania, de aproximação, de harmonia civil.

A sua pretensão é “a desconstrução do mito idealista do desporto «velho como o mundo» (dos gregos aos nossos dias)” (3). A teoria crítica do desporto de Brohm mostra-nos que “o espectáculo desportivo que os seus fanáticos apresentam sempre como uma «festa», uma fonte de «felicidade», uma oportunidade de «sonhar» ou uma «comunhão popular» é de facto - e muito mais prosaicamente - um enorme empreendimento de despolitização e de desapropriação de si no seio de identificações «fictícias» para com vedetas «míticas», para com dream teams «excepcionais» ou para com «equipas emblemáticas». O espetáculo desportivo não é mais do que um caso particular dessa alienação coletiva no consumo excessivo de imagens, de shows, de slogans, de gadgets e de mercadorias. (…) A mercantilização generalizada da devoção pelas estrelas das pistas e estádios (posters, maillots e outros produtos derivados), a representação televisa incessante de seus confrontos, ambições e decepções, a exibição de suas fortunas e suas infidelidades conjugais, o interminável voyeurismo desportivo tornam-se o conteúdo ideológico mediaticamente supervalorizado que suplanta todas as outras preocupações; o vazio, o efémero, o fútil e o grotesco, o trivial e o banal constituem então a própria realidade da uma falsa consciência. ”

Urge tomarmos consciência para que, na realidade, serve o espectáculo desportivo e quais as suas funções. Talvez então, a partir daí, a realidade na nossa consciência seja outra.

(1) Jean-Marie Brohm, 1993, “Les meutes sportives”. Paris: L’Harmattan.

(2) http://la-sociale.viabloga.com/news/le-spectacle-sportif-une-alienation-de-masse

(3) Jean-Marie Brohm, 2017, “Théorie critique du sport”. Alboussière: QS? Éditions.

Armando Neves dos Inocentes é Mestre em Gestão da Formação Desportiva, licenciado em Ensino de Educação Física, cinto negro 5º dan de karate-do e treinador de Grau IV.