Márcia Costa, Jogadora da Década: «Nós não queremos ser iguais aos homens»

ENTREVISTA A BOLA Márcia Costa, Jogadora da Década: «Nós não queremos ser iguais aos homens»

BASQUETEBOL30.04.202410:30

Atleta do Gdessa, eleita pela Federação como jogadora da década, é exemplo vivo da compatibilidade entre ser mãe e jogadora e mostra a sua força em campanha da Betclic

Falámos em março, um mês com aura feminina. É o mês do dia da Mulher, arranca a primavera. Começa com M, tal como o nome de Márcia Costa, jogadora de basquetebol profissional, campeã nacional da época 2022/23, mãe. Sem nenhuma ordem específica. Apenas várias facetas de uma pessoa que tenta não se deixar vergar pelo género e aponta para cima, como afirmou na campanha da Betclic, patrocinadora do campeonato feminino, contra a discriminação de género.

Em 2017 tornou-se profissional e em 2020 foi distinguida como Jogadora da Época e mãe, mesmo antes de a pandemia fechar o mundo. Meses depois voltou ainda mais forte e com o filho Tomás ao lado nos treinos e jogos no GDESSA, no Barreiro.

- «E se te focasses numa carreira a sério?; Não tens estofo para isso tudo; vais mesmo continuar, agora que és mãe? Isso não te vai levar a lado nenhum» são as frases fortes da campanha que protagoniza para a Betclic. Quantas destas coisas ouviu?

- Inevitavelmente, com palavras mais bonitas, outras mais diretas, vão sempre aparecendo. Esta campanha toca-me porque são frases que fui ouvindo mesmo ao longo da vida.

- O «isto não te vai levar a lado nenhum» tem a ver com ser profissional?

- É abdicar de algo que é certo por algo que é incerto, porque muitas vezes a estrutura à volta não está pronta. Em 2017 eu e o meu marido achámos que fazia sentido apostarmos mesmo que não houvesse retorno imediato.

- Jogava e tinha uma carreira paralela.

-Sim, tirei o curso e acabei por ser a diretora técnica de um ginásio. Gostava do que fazia, mas saía do trabalho e tinha que ir para os treinos de basquetebol e estar a cem por cento. Quando o esforço se tornou demasiado, achei que fazia sentido dedicar-me a cem por cento ao basket.

- O basquetebol apareceu em criança?

- Sim. Há meninas que começam a jogar muito mais cedo, comecei aos 10 anos, de uma maneira que não estava à espera – uma vizinha queria que jogasse porque faltavam crianças e prometerem um gelado - e sempre joguei, como alguém me disse, o ‘basket pelo basket’.  Não tinha ambição de ser profissional, de ir jogar para fora, era o sítio onde estava com as minhas amigas. Foi muito tarde que comecei a ver o basket como profissional. Ainda precisamos de mais meninas, o GDESSA é um clube só de mulheres, tínhamos sempre que competir contra rapazes, havia sempre essa necessidade. Durante muitos anos a modalidade foi vista como uma secção muito masculina, muito física, não era recomendado para raparigas. E isso tudo, obviamente, tem que se desconstruir.

- Em 2020 foi escolhida pela federação como jogadora da década 2010-2020, mas só se profissionalizou em 2017. Essa distinção ganha mais valor?

- Ganha porque é um reconhecimento do público que me foi vendo, nem tudo é estatística. Apontei para cima mesmo sem saber. Se estivesse apenas no Melhor Cinco, já ficava satisfeita. Sabe-me bem porque apenas vivi a minha vida da melhor maneira. Apontei para cima mesmo sem saber, e isso deixa-me satisfeita, quer dizer que, de alguma maneira, enquanto mulher, estive no caminho que pode ser o certo. Temos muito boas advogadas na nossa liga, que são excelentes jogadoras, temos dentistas, mas gostava que alguém que tivesse a vontade de ser apenas profissional também pudesse ser reconhecido dessa maneira. Há muitas nesta situação, mesmo muitas. Estava no pavilhão a treinar com o meu filho com 5 meses perto, e saber que me tinham reconhecido num momento em que vinha de uma situação frágil, queria fazer as coisas bem, não queria prejudicar o menino nem a mim, foi muito bom. Foi um ‘bombom’ a dar força para um momento que sabia que ia ser delicado, mas que estava disposta a passar.

- O que é que impede uma mulher de ser profissional?

- Muitas vezes depende de poder dar um ordenado confortável para que uma mulher possa dedicar-se ao desporto. Não é uma decisão fácil. A estrutura salarial não acompanhar a vontade de uma mulher em crescer como profissional, é logo uma das primeiras barreiras. Fala-se muito em igualdade, mas, se calhar, temos de falar primeiro de equidade. Uma das coisas que percebi é que nós não queremos ser iguais aos homens. O que não pode acontecer é sermos tratadas como inferiores. Se um homem, em determinado registo, tem direito a determinado salário, uma mulher, em mesmo registo, não o merecerá menos. Podem apostar no feminino, porque qualidade nós temos. Desafio qualquer pessoa a ver um jogo de playoff da nossa liga [o GDESSA foi eliminado nas meias-finais pelo Benfica], e garanto que qualquer uma das minhas colegas vai dar um ótimo espetáculo. Se deste lado fazemos a nossa parte, porque não mostrar a mais marcas, que faz sentido apostar em nós? Mostrar às meninas existem mais meninas que jogam basquete, que são boas enfermeiras e jogam basquete, que são boas mães e jogam basquete, que são mulheres e jogam basquete?

 - O que é mais provável: Uma mulher deixar de ser jogadora para ser mãe ou deixar de ser mãe para ser jogadora?

- Depende. Não tem mal nenhum abdicarmos de ser mães ou atletas e ficarmos com o outro papel. O que acho mal é quebrarmos à partida o sonho de manter as duas coisas porque não existe estrutura. E é nesse aspeto que a comunicação social, que marcas como a Betclic, como a própria federação, são importantes: criarmos estruturas para que não perdermos jogadoras com qualidade por termos de tomar essa decisão.

-Antes dos jogos, tem superstições, rituais? -Tenho muitas e tento quebrar todas (risos), porque não gosto de estar presa a nenhuma superstição. Mas tenho uma coisa que faço já há algum tempo, que é, quando entro em campo, digo a todas as minhas colegas ‘entrar com força’ e a todo o staff ‘vai correr bem’.

- Mas isso é muito bom…

- É. É passar conforto para o outro lado e receber de alguma maneira também conforto de quem está ali comigo.