OPINIÃO Uma reflexão sobre os Jogos Olímpicos
Professor e filósofo reflete sobre as Olimpíadas de Paris
Thomas Arnold
Com os meus 91 anos de idade, relembro, com frequência, os versos de Maiakovski: «Comigo a anatomia enlouqueceu: / sou todo coração». É que também eu, hoje, velho e trôpego, sou todo coração. Mas, mesmo assim, se a tanto chegar, vou tentar filosofar um pouco, discípulo venerador e obrigado de Kant que afirma, sem problemas, que «não há filosofia que se possa aprender, porque só se pode aprender a filosofar». Isto, se bem penso, dizia-nos ele para salientar que a filosofia é sobretudo uma atitude, um conhecimento instituinte em perene questionamento do saber instituído. E assim começo: os Jogos Olímpicos (refiro-me aos da modernidade) são de cunho ostensivamente ocidental: um europeu (Pierre de Coubertin, que nasceu em Paris, em 1 de Janeiro de 1863) os concebeu e planeou, designadamente após viagem de estudo à Inglaterra, onde conheceu a inovadora pedagogia do cónego inglês Thomas Arnold. Com efeito, este religioso britânico, professor universitário de intocável prestígio, fez do desporto o fator primeiro de uma sã pedagogia – uma tese de que Pierre de Coubertin se confessou rendido às certeiras observações desta nova experiência pedagógica, já com ótimos resultados, por todos reconhecidos, principalmente no rosto jovial dos seus alunos. Sob a inspiração do que aprendera em Londres, tentou também, e com crescente autoridade, levar ao seu país e afinal ao mundo todo a trave mestra de uma nova pedagogia: a prática desportiva! E uma prática desportiva que fosse, sobretudo, uma ética em movimento. Segundo Gustavo Pires, são cinco os mentores intelectuais de Pierre de Coubertin: o pedagogo Thomas Arnold (1795-1842), o sociólogo Frédéric Le Play (1808-1882), o filósofo Hippolyte Adolphe Taine (1828-1893) e o frade Henri Didon (1840-1900). Continuo com Gustavo Pires, um estudioso incansável desta problemática: Coubertin considerava Thomas Arnold um génio da educação que, diretor da Escola de Rugby, de 1828 a 1842, atribuiu ao desporto lugar primacial no ato educativo. «A admiração de Coubertin por Thomas Arnold era de tal ordem que, no princípio de 1889, dedicou um livro, prefaciado por Jules Simon e intitulado L’Éducation Anglaise en France, à figura de Arnold» (Gustavo Pires, Olimpicamente – A Rutura de Pierre de Coubertin com a Educação Física, prefácio de Carlos Colaço, FMH, 2014, p. 19).
Pierre de Coubertin
Não me demoro nas raízes helénicas dos Jogos Olímpicos: a Hércules, homenzarrão de incomparável destreza física, se credita, no entender de Píndaro, a sua fundação. Outros eram os Jogos que reuniam também o povo grego e todos eles presididos por uma divindade do panteão helénico. De facto, o patrocinador de cada um dos Jogos era sempre um deus. Mas… «não vou por aí» (como diria o Régio), até porque me falta uma sageza rigorosa e segura da Grécia Clássica. Quero relembrar que Pierre de Coubertin, até à sua morte, que o surpreendeu, em Genève, em 1937, foi um escritor incansável, dando particular relevo à história e à pedagogia. Não vou chamar a mim o encargo de apregoar a invulgaridade dos méritos do legado escrito de Pierre de Coubertin, mas não posso deixar de salientar Michel Clare, na sua Introduction au Sport (Les éditions ouvrières. Paris, 1965): «Descobre-se, em Coubertin, uma extraordinária generosidade, que leva este aristocrata, adversário frontal do espírito classista e burguês, a avançar na fundação das primeiras universidades operárias» (p. 23). Esta é uma ideia que interessa reter: Pierre de Coubertin, nobre embora, era um democrata. Também ele, arrostando a ácida oposição de muitos dos seus amigos, levantou, em público, esta questão: se a política significa o que se refere ao poder, na democracia onde reside o poder? Não é de estranhar por isso que, ao fundar o Comité Olímpico Internacional (COI), em 1894, com a sede em Lausanne, tenha confiado a presidência ao grego D. Vikelas. O que caracteriza uma governação não democrática é o facto de o poder ser investido numa pessoa que pretende exercê-lo, durante toda a vida, como se dele fosse proprietário. O ditador é isto mesmo. Pelo ditador (e são tantos ainda, por esse mundo além) se volta ao direito romano que concedia ao proprietário de um escravo a faculdade de usar e abusar dele: jus utendi et abutendi. Mas, à testa das preocupações de Coubertin, esta sobreleva as demais: internacionalizar o movimento desportivo, para fazer do desporto um meio (um meio indispensável) de fraternizar a vida das pessoas e a convivência entre as nações. Por isso, o que mais me deslumbrou nos Jogos Olímpicos, encafuado que estou no meu quarto de doente, não foi só o desempenho dos atletas, a sua inteligência tática, as suas invulgares qualidades físicas, psíquicas e psicológicas, o que mais me emocionou foi o respeito que todos têm uns pelos outros, foi a lúcida serenidade que os levou, findas as provas de altíssima competição, a abraçarem-se como amigos: os perdedores, sem amargura e ressentimento; os vencedores, sem arrogância ou presunção. Todos deram, exemplarmente, tudo o que tinham – todos ganharam, nenhum perdeu!
«Vemos, ouvimos e lemos»
«Vemos, ouvimos e lemos / não podemos ignorar» são os primeiros dois versos de um inolvidável poema de Sophia de Melo Breyner Andresen e que Francisco Fanhais musicou, para uma cerimónia religiosa na capela do Rato, corria o ano de 1970 e… corria também uma penosa (e estúpida) guerra colonial!... E o que vemos e ouvimos e lemos nós, nos dias de hoje? Moderada a euforia pelas nossas quatro medalhas olímpicas e 14 diplomas, continua, com meticulosa regularidade, o genocídio do povo mártir palestiniano; continua a luta criminosa de Maduro e dos seus áulicos, contra o povo venezuelano; continua a invasão da Ucrânia, que o Sr. Putin (olhitos sagazes e maliciosos) vasculhando, hipocritamente, a história do seu país, quer considerar uma das páginas maiores da vida da Santa Rússia; continuam os episódios de extrema violência de bandos de arruaceiros xenófobos, em algumas cidades do Reino Unido; continuam as demissões nos organismos que Ana Paula Martins tutela; continua a retórica agressiva do líder do Chega ao sistema político que o sustenta; Kamala Harris e Tim Walz preparam-se para os debates com o republicano Donald Trump, que põe no que faz, publicamente, uma paixão desenfreada. E mais poderia adiantar. Mas por aqui me fico. Assisti, pela televisão, ao encerramento dos Jogos Olímpicos de Paris. Cumpro, como uma inevitável rotina, ler e escrever durante o dia e ver televisão até por volta da meia-noite. Se não estou em erro, passando ao largo do formidável espectáculo que a tecnologia proporcionava, o presidente do COI afirmou que estes foram os Jogos Olímpicos da Paz. Corroborei imediatamente as palavras do alemão Thomas Bach. De facto, se o desporto é o fenómeno cultural de maior magia no mundo contemporâneo; e se o desporto é também uma conduta que dá primazia a uma convivência fraterna – há necessidade de mais desporto, no mundo atual. E porquê? Porque a paz corre perigo; porque há homens (no poder) que são lobos do homem; porque uma atmosfera opressiva de hostilidade persegue, nalguns países, os que, sendo a expressão viva da consciência política de um país, não se deixam moderar ou domesticar. Enfim, investir no desporto é investir na paz! Isto mesmo disse, com outras palavras, o Dr. José Manuel Constantino, presidente do Comité Olímpico de Portugal (COP), que eu ainda conheci como aluno do INEF e que, há pouco, faleceu. Não precisou de ser arquiespecializado em Direito para marcar, numa fecunda política de realizações, a sua fulgurante passagem pela presidência do COP. Não esqueço a mensagem que me enviou, quando a Universidade Católica teve a bondade de criar a Cátedra Manuel Sérgio. Paz à sua alma!