Opinião Sobrevivemos
'Selvagem e sentimental', o espaço de opinião de Vasco Mendonça. «Já agora, rejeito qualquer espécie de sentimento de culpa por não me conseguir entusiasmar com a Seleção do meu país.»
Sobrevivemos à pausa para as seleções. A vida prossegue agora mais feliz. O leitor poderá pensar que isto é ausência de sentimento patriótico, mas o facto é que gosto cada vez mais do meu país. Poderá também suspeitar que é desinteresse pelo jogo jogado, um súbito desencanto com a modalidade logo agora que a Seleção Portuguesa se mostra aparentemente capaz de levar tudo à frente e assim continuar a patrocinar os recordes de Cristiano Ronaldo. Nada disso, continuo a gostar muito do futebol praticado por grande parte dos atletas que estão na convocatória. E tenciono continuar a acompanhar atentamente a modalidade. Talvez por isso alguns leitores mais suspeitos tentem reduzir tudo a um caso patológico de clubismo, mas devo reconfortá-los. Excesso de benfiquismo também não é, seguramente, que isso não existe.
Como explicar então este meu desinteresse? Sabem aqueles casamentos muito longos em que as pessoas se apaixonaram, depois desapaixonaram, e um dia acordaram para descobrir que vivem juntas mas já mal se observam ou escutam uma à outra? É aí que me encontro. Há um afeto qualquer, mas está bem longe dos dias de hoje. Se me fosse pedido, sei que consigo desencantar as memórias de alguns momentos muito felizes a torcer pela Seleção, a expectativa com que aguardei por alguns jogos, ou até o entusiasmo com essa espécie de consciência coletiva de patriotismo que nos toma de assalto antes de um simples jogo de futebol precedido por um hino que a maioria dos jogadores escolhe não cantar. É parvo, mas emocionei-me algumas vezes por eles, como se os substituísse nessa tarefa. Aqui chegado, hoje não sei mesmo o que é feito do meu afecto pela Seleção. Diria que fui vítima de uma combinação violenta de longos anos de mau futebol, um franco desinteresse em tornar esse futebol melhor, de convocatórias discutíveis, e de uma panóplia de temas que foram tornando a seleção uma coisa estruturalmente distante do que me levou a gostar de futebol em miúdo.
Já agora, rejeito qualquer espécie de sentimento de culpa por não me conseguir entusiasmar com a Seleção do meu país. Não sinto orgulho por esta falta de entusiasmo. Se partilho aqui o sentimento, é porque de alguma forma o lamento. Não há nada de performativo nisto. Bem espremido, é mesmo só desinteresse, uma certa apatia que tomou conta de mim quando o tema é este.
A minha pausa para as seleções foi salva pelo Mundial de râguebi. Mas apetece-me dizer, nestes dias em que assistimos ao regresso de uma certa euforia em torno da Seleção Nacional de futebol, que vai ser preciso muito mais para recuperar alguns adeptos que, como eu, foram deixados pelo caminho ou decidiram sair pelo seu próprio pé. Não sei bem como isso se faz, nem sei se é possível. Pelo caminho tornámo-nos todos mais velhos e talvez tenhamos menos paciência para voltar a apreciar o romance. Talvez o jogo jogado consiga aos poucos convencer-me a ver, afinal, esse futebol-espectáculo de que fala toda a gente. Talvez um briefing para uma futura campanha de marketing da Seleção aluda aos que, como eu, se desinteressaram e agora contam os dias até ao próximo jogo do seu clube. Ainda não perdi a esperança, mas o facto é que hoje me sinto mais representado pelo Benfica do que pela seleção do meu país, e estou absolutamente convicto de que foi a seleção a empurrar-me nessa direção.
Mas há mais uma coisa que me incomoda na equipa de todos nós, ainda que indiretamente. A consequência natural de um par de semanas sem Benfica é que um país inteiro sofre mais com isso do que com a sua seleção. Por um lado, é preciso suspender por momentos a fixação natural com a maior instituição portuguesa, justificada antes de mais pela esmagadora maioria de adeptos benfiquistas que compõem a população do país, e reforçada pelos restantes adeptos, que na sua maioria apreciam toda e qualquer história que pareça diminuir o Benfica de alguma forma. Por outro lado, dificilmente o país sobrevive a duas semanas sem histórias sobre o Benfica. A Seleção talvez encha um ou outro estádio, mas o Benfica enche estádios, os telejornais, e o que mais houver para nos fazer sair da cama.
Só há um problema. Quase nada se passou com o Benfica, que manteve uma parte dos jogadores a treinar enquanto os restantes representavam os seus países. Mas isso não impediu que alguns tentassem. Ouviu-se falar de um jogo-treino contra o Torreense, mas as expetativas saíram frustradas. Quis o destino que o jogador afastado do grupo de trabalho, João Victor, fosse reintegrado e até marcasse o golo da vitória. Pouco ou nada sucedeu, pelo menos até ter rebentado a bomba pela qual ninguém esperava. Última Hora! Foi detido um comentador da BTV. Poder-se-ia pensar que este tema envolvia o Benfica, tal foi a forma como o noticiaram. Aliás, fiquei absolutamente seguro disso quando vi a notícia em destaque na página principal de mais do que um órgão de comunicação social. A sensação durou meia dúzia de segundos, claro, até perceber que nada na referida detenção diz respeito ao Benfica, excepto a ocupação ocasional do detido enquanto comentador afeto a um clube. Este é um daqueles engenhos noticiosos particularmente úteis quando nada mais acontece no futebol português. Junta-se a irrelevância de uma notícia ao poder da sugestão, menciona-se o Benfica, et voilá, assim se conquista uns valentes milhares de visitas ao site que seriam impossíveis de outro modo.
Não foi fácil, mas sobrevivemos. A pausa para as seleções terminou e a vida prossegue agora mais feliz. O Benfica retomará o seu desígnio de fazer avançar a economia, preenchendo o vazio estrutural das nossas vidas, se possível com uma vitória esclarecedora seguida de outra, e assim sucessivamente, até não restar sombra de dúvida acerca da prestação da equipa esta época e os títulos estarem todos decididos. Será então tempo de voltarmos a ficar sem assunto. Quem sabe nessa altura volto a pensar na Seleção.