Sem margem de erro
Os jogos da fase de grupos trouxeram uma ilação importante: a flexibilidade tática pode ser uma arma importante; 'Mercado de valores', por Diogo Luís
Roberto Martínez pode ter muitos defeitos mas a realidade é que nos fez esquecer que existe uma máquina calculadora para atingirmos os nossos objetivos. Foi assim no apuramento e foi assim na fase de grupos do Euro-2024. Se foi tudo perfeito até agora? Claro que não! Se há margem para evoluir? Sem dúvida!
Chéquia - entrada difícil
A nossa entrada no Euro-2024 não foi fantástica. Vencemos a Chéquia sem uma exibição ofensivamente convincente. Não faço parte do grupo de críticos que diz que Portugal fez um jogo muito fraco frente à Chéquia. Acompanho com regularidade o Euro-2024 e, até ao nosso primeiro jogo, não tinha visto uma equipa a jogar, praticamente, com onze jogadores dentro da sua grande área. Esta abordagem do nosso adversário ao jogo foi a consequência do posicionamento em campo da nossa Seleção e da forma como teve receio do nosso poder.
Martínez implementou um 3x4x3 que teve como objetivo criar superioridade numérica no meio-campo. Como? Cancelo e Bernardo vinham para zonas interiores onde se juntavam a Vitinha e Bruno Fernandes, deixando a profundidade para Leão e Dalot. Nuno Mendes tinha como função ser um falso central, com liberdade para se aventurar ofensivamente e com velocidade para anular os contra-ataques do adversário. A realidade é que, defensivamente, Portugal dominou por completo a Chéquia, que fez apenas um remate à baliza. Este domínio foi exercido em dois momentos: na reação e recuperação rápida da posse de bola e na organização e equilíbrio defensivo. Importa ainda referir que a Chéquia é uma equipa que gosta de ter referências para marcar e dividir o jogo no aspeto físico.
Onde Portugal não esteve ao seu nível foi no capítulo ofensivo. Tivemos dificuldades em penetrar no último terço adversário, com pouca capacidade de desequilíbrio e imaginação e com poucos elementos em zona de finalização. Na leitura de jogo Roberto Martínez falhou, porque demorou muito a mexer, apesar de ter tido a felicidade de ter lançado dois jogadores no último minuto que resolveram o jogo (Neto mais Conceição).
Turquia - conforto no relvado
O segundo jogo foi completamente diferente. Defrontámos uma seleção que vinha confiante do primeiro jogo e que teve a ousadia de querer disputar o resultado. A nossa abordagem também foi diferente. Mais uma vez, fomos uma equipa dominadora, mas com um figurino diferente. Palhinha entrou e saiu Dalot. Cancelo voltou a jogar muitas vezes por dentro, para criar superioridade, surpreender o adversário e criar imprevisibilidade. Vitinha jogou um pouco mais adiantado, assim como Bruno Fernandes, protegidos por Palhinha.
Defensivamente estávamos equilibrados e ofensivamente tivemos maior fluidez porque todos se sentiram confortáveis no relvado. A consequência foi uma boa exibição, coroada com um bom resultado. Com este bom jogo, de uma forma unânime, reforçámos o estatuto de candidato a vencer o Europeu.
Objetivo alcançado
Ao fim de dois jogos alcançámos o objetivo número um: e qual era o esse objetivo? Atingir os oitavos de final e passar no primeiro lugar do grupo. Podemos alegar que o grupo era fraco ou que não defrontámos seleções com maior capacidade. Percebo o argumento, mas posso e devo questionar: e a superequipa da França tinha adversários de enorme dimensão no seu grupo? Conseguiu o primeiro lugar? Ou a Alemanha que se apurou em primeiro lugar no último minuto do terceiro jogo frente à Suíça?
Geórgia - um jogo diferente
Contra a Geórgia, Roberto Martínez fez o que tinha a fazer. Mudou jogadores no onze inicial. Deu descanso a oito titulares que jogaram no dia 22 e que voltarão a fazê-lo no jogo de amanhã. Com esta opção, estes jogadores terão tempo para descansarem e recuperarem dos dois primeiros jogos e depois de uma época desgastante. Em simultâneo, poderão focar-se no jogo de amanhã frente à Eslovénia. Deu oportunidade a todos os outros de terem minutos e de se mostrarem.
É verdade que o jogo não correu bem. Foram cometidos alguns erros individuais, coletivos e faltou-nos maior ligação e discernimento em termos ofensivos. Posso encontrar algumas justificações para que nem tudo tenha corrido bem.
Primeiramente, mudar oito elementos traz sempre dificuldades de ligação entre jogadores. Em segundo lugar, sofrer um golo aos 90 segundos poderá ter aumentado a ansiedade daqueles que tinham a oportunidade de se mostrarem ao selecionador e de exigirem mais minutos de jogo. A terceira justificação foi a abordagem ao jogo, que me parece que foi feita não em função do adversário, mas porque Martínez tinha de encaixar os jogadores que queria utilizar num onze. Assim, o sistema foi o que permitiu acomodar aqueles que tinham de jogar e não foi ao encontro das melhores características de cada um. A quarta justificação, e esta é a que deve ser a mais preocupante para o selecionador, foi a constatação de que, mais uma vez, quando os adversários se fecham em linhas muito juntas perto da sua grande área, nós temos muitas dificuldades em conseguir criar situações de finalização, sobretudo a jogar com três centrais.
Resumindo, o jogo correu mal, as alternativas não ganharam pontos, mas o objetivo de dar descanso aos mais utilizados foi alcançado. Todos podem criticar a exibição da nossa Seleção, mas a pergunta que coloco é: alguém faria alguma coisa diferente do que Martínez fez?
Copo cheio ‘vs.’ copo vazio
O nosso trajeto definiu as opções de Roberto Martínez. Há vários caminhos para se alcançar o sucesso. A Alemanha ou a Espanha privilegiam um onze e um sistema bem definidos, com movimentos bem padronizados e mecanizados. No caso de Portugal, Martínez dá primazia à flexibilidade tática, dando liberdade aos atletas, procurando retirar referências ofensivas aos adversários e posicionando os jogadores em campo de forma a conseguirem ter uma boa reação à perda de bola.
Os jogos da fase de grupos trouxeram uma ilação importante: a flexibilidade tática pode ser uma arma importante desde que seja utilizada com equilíbrio. Quero com isto dizer que, para que a flexibilidade tática funcione, é fundamental que os jogadores se sintam confortáveis dentro do relvado. Por exemplo, Cancelo sente-se confortável em fazer movimentos interiores ou criar superioridade no meio-campo, mas Dalot já não tem essas características. Como tal, quando chegamos aos momentos de decisão, é importante que a flexibilidade tática seja complementada com processos simples, familiares e que tornem o nosso jogo fluido.
Também é importante perceber que um jogo menos conseguido não pode, de repente, fazer com que pareça que não temos alternativas ao onze titular. João Neves continua a ser uma excelente solução para o meio-campo, Diogo Jota pode lutar por um lugar no onze ou Neto e Conceição podem agitar qualquer jogo.
É ainda fundamental percebermos que estamos onde queremos e como queremos. Fizemos o nosso trabalho em dois jogos apenas. Se é verdade que para chegarmos longe temos de ultrapassar adversários muito duros, tal se deve ao facto de as outras seleções não terem sido tão competentes (como a França ou Bélgica).
Por fim, para podermos avançar, temos de ultrapassar a Eslovénia que não tem a nossa dimensão, mas que se vai fechar e vai fazer aquilo de que não gostamos. Depois de nove dias de descanso e de três jogos que nos trouxeram experiências e aprendizagens diferentes, acredito que vamos estar preparados para continuar a prosseguir o nosso caminho nesta competição.
A valorizar
João Fonseca - FIFA. Numa recente entrevista fez um excelente diagnóstico da realidade do futebol português. Apontou caminhos, deu exemplos, deixou interrogações, reforçou a importância de profissionais devidamente qualificados e mostrou preocupação com o caminho que a centralização de direitos está a levar.