Se o Benfica é destes sócios, privatizemos o clube
Roger Schmidt no treino do Benfica em Salzburgo (Foto: GEPA pictures/IMAGO)
Foto: IMAGO

Se o Benfica é destes sócios, privatizemos o clube

OPINIÃO12.12.202311:23

Roger Schmidt é tão adulto como quem lê este texto e sabe bem aquilo que o espera se a equipa continuar a não convencer - «Selvagem e sentimental», a opinião de Vasco Mendonça.

Tivesse eu a sorte de receber um euro por cada vez que alguém vocifera que o Benfica é dos sócios e já seria milionário por esta altura. Nada tenho contra a afirmação. É assim em termos formais e é natural que, consagrado esse princípio na definição estatutária de uma instituição, seja também assim em termos emocionais. Os direitos de propriedade, em especial os mais próximos do coração, são para se reclamar e defender. É uma afirmação que, aliás, já vi ser feita inúmeras vezes para defender o Benfica e os seus valores fundadores, quase sempre com a melhor das motivações, e provém de qualidades que definem maioritariamente os Benfiquistas: a defesa de princípios adequados de cultura desportiva, um associativismo assente na grandeza de espírito e na prática democrática, a salutar convivência com os adversários, mesmo que nem sempre recíproca, e uma necessária mundividência para se ser, afinal, e como sempre foi, o maior de Portugal e, aos olhos de todos os que conservam a sua honestidade intelectual, um dos maiores do mundo. 

Por tudo isto, custa um pouco quando discutimos certas coisas tomando a parte pelo todo, como algumas argumentações em que tropecei nos últimos dias. Mais a frio, acho que é importante começar por aqui. Quando alguém utiliza o argumento de que o Benfica é dos sócios para enquadrar o que se passou no sábado passado, corre o sério risco — mesmo que não tenha essa intenção — de relativizar o comportamento inaceitável de quem atirou objetos ao treinador do seu clube porque não concordou com uma substituição. Se o Benfica é destes sócios, então permitam-me a provocação: talvez seja melhor privatizarmos o clube antes que fique na mão de mais gente como esta, que em nada representa a grandeza do meu clube. 

Note-se que também eu tenho sentimentos. No calor do momento, antes mesmo da substituição, estava preparado para me lançar numa crítica furiosa a Roger Schmidt — e parte de mim ainda está. Digo Roger Schmidt porque é quem, para desgosto do próprio, está mais à mão de ser criticado. É um lugar estranhamente solitário que às vezes dá que pensar. Mas, dizia, uma pessoa pensa em tudo quando está prestes a perder pontos em casa contra o Farense depois de ter falhado duas mãos-cheias de oportunidades de golo. Pensei nas substituições de jogos anteriores, muito antes da saída do João Neves, pensei nas exibições pouco convincentes, pensei no que já fomos, lembrei-me dos pontos que tínhamos perdido e pensei nos pontos que estávamos prestes a perder, lembrei-me de algumas respostas pouco galvanizadoras do treinador quando questionado pelos jornalistas ao longo das últimas semanas. Lembrei-me de muita coisa, mas jamais me ocorreria atirar um objeto a um treinador do Benfica. Podia agora dizer de forma algo melodramática que o Benfica não é isso, mas essa não é uma singularidade do Benfica. Por muito que tente, não me lembro de contextos da nossa vida em sociedade em que arremessar um objeto na direção de alguém seja aceitável. Nos últimos dias, falou-se em impedir estes adeptos de irem ao estádio e creio que nada aconteceu entretanto. Chamem-me ingénuo, mas eu tenho uma outra esperança na humanidade: a de que estes adeptos revejam as imagens de sábado e decidam sair pelo seu próprio pé. Voltem um dia mais tarde, se possível ainda cobertos de vergonha. 

Depois há as questões de estilo. Em nenhum momento até hoje, desde que me lembro de ver jogos do Benfica, o meu cérebro me disse que o Benfica é meu e que, portanto, conquistei o direito a assobiar um treinador ou um jogador da minha equipa. Se algum dia aconteceu, vou desde já alegar que estava inebriado e pedir desculpa pelo sucedido. No caso dos assobios, não tenho qualquer recomendação de civilidade a fazer. É somente uma apreciação estética ou uma matemática que eu aplico a estas coisas. Não consigo perceber em que é que os assobios nos aproximam de uma vitória no jogo seguinte. E não saio menos desiludido com esses treinadores ou jogadores. Simplesmente não tenho em mim esse sentimento. Tendo já assistido a coisas no Benfica que ainda hoje me causam stress pós-traumático, acho que já não vou a tempo de desenvolver esse gosto pelo assobio. 

Acontecimentos tristes como os de sábado produzem efeitos exatamente opostos aos pretendidos por quem decidiu passar dos assobios aos arremessos. Transformaram o momento da equipa, que exige análise e reflexão sérias, num contexto completamente diferente, em que é necessário lembrar que, antes das vitórias ou das derrotas, devem vir mínimos de decência. Eu não estou certo de que exista uma campanha contra Roger Schmidt na comunicação social. Sei que qualquer treinador do Benfica é levado ao colo quando vence e convence, e é destruído em público quando perde, porque é assim que uma economia de conteúdos funciona em Portugal. E sei que Roger Schmidt respondeu bem ao que se passou no sábado, ainda que com uma franqueza perigosa, por ter parecido fazer observações gerais sobre os adeptos presentes no estádio quando, de facto, se referia apenas aos que atiraram objetos. 

Roger Schmidt é tão adulto como quem lê este texto e sabe bem aquilo que o espera se a equipa continuar a não convencer: se o bom senso imperar, não serão mais objetos arremessados, mas serão muitos mais assobios, até esse inferno se tornar ensurdecedor. É mesmo urgente vencer e convencer, por ele e por nós. Mas, mesmo contra a minha opinião mais crítica acerca do que têm sido os últimos meses do treinador do Benfica, não me resta outra opção esta semana senão apoiar este treinador e esperar que tanto ele como os jogadores façam deste episódio vergonhoso um proverbial momento de viragem na época. E, se isso não acontecer, que os donos do clube saibam estar à altura do momento.