OPINIÃO Perceções delirantes no Benfica e não só
A Assembleia Geral do Benfica, amanhã, é um dos locais para se pedir contas a quem lidera. Pode ser é que muitos sejam vítimas de perceções delirantes
Numa das várias viagens de muitas horas da aldeia para Lisboa, a companhia de Inês de Meneses e Júlio Machado Vaz, através do programa de rádio O Amor É da Antena 1, naquela edição com a participação do psiquiatra José Gameiro, não só contribuiu para aliviar o espírito triste de quem deixou para trás o que gosta muito como também me despertou para um conceito no qual vivemos muito mais do que gostaríamos e, provavelmente, sem disso nos darmos conta.
A infidelidade nas relações era o assunto em discussão — valerá a pena ouvir aquele episódio — mas tomo a liberdade, com a devida vénia e humilde apelo à compreensão dos psiquiatras, de apropriá-lo e canibalizá-lo, por certo erradamente, para o futebol. Foi para aí, aliás, que seguiu o meu pensamento, o que, refletindo, me faz concluir que deveria ocupar mais a cabeça com outros assuntos.
José Gameiro falava — com o conhecimento da literatura e da prática — de uma forma simples, para que pudesse compreender quem estivesse a ouvir, do conceito de perceção delirante e explicava, se bem me recordo, das conclusões ou das interpretações de que fazemos de comportamentos dos outros. Deu o exemplo de um casal num processo de restabelecimento da confiança e de um deles pensar que o outro fez coisas por uma ou outra razão, tentando encontrar motivações no parceiro que podem não ter adesão à realidade.
E adesão à realidade é coisa que vai faltando no futebol, mais até em quem o vê e analisa do que em quem o pratica ou dele faz parte. Sempre pensei — e, neste caso, já para cá não entra o programa dos ilustres psiquiatras — que estaremos sempre mais confortáveis connosco e com o nosso lugar na sociedade quando a nossa perceção da realidade estiver mais próxima da realidade. E, no entanto, parece-me claro que no Benfica e ainda mais fora dele se vive mais em delírios provocados pela perceção da realidade.
Rui Costa explicou o mercado de transferências do Benfica, tentou sossegar os sócios sobre a situação financeira da SAD, comentou a última Assembleia Geral Extraordinária, no contexto assético do canal do clube e sem contraditório, e, apesar disso, poderá ter ficado a sensação, em sócios, adeptos ou observadores, de que ficou muito mais por dizer e de que o que disse pode não ter servido para grandes convencimentos. Porque, provavelmente, estaremos todos presos nas nossas perceções delirantes, imaginando que empurrou João Neves para Paris, David Neres para Nápoles e Marcos Leonardo para a Arábia Saudita preocupado em ser recordista de vendas, que nem ele nem alguém no clube percebe de futebol, que o título conquistado em 2023 foi obra miraculosa ou do acaso, que não se consegue encontrar uma coisa boa no Benfica.
A realidade do Benfica é, devemos coincidir todos, tão complexa que não pode ser explicada num artigo de opinião, numa frase polémica ou numa piadola para chamar a atenção. É impossível ignorar que muita coisa não está bem — da SAD aos órgãos sociais do clube, das finanças à política desportiva (como prova o despedimento de Schmidt) — e devem, por isso, ser pedidas as contas a quem lidera. A Assembleia Geral de amanhã é um dos locais apropriados. Pode ser, porém, que muitos, como eu, sejam vítimas de perceções delirantes e tenham pouca adesão à realidade.