Os filhos de um deus menor
Adeptos do SC Braga e do FC Porto na final da Taça, no Estádio do Jamor.
Foto: IMAGO

Os filhos de um deus menor

OPINIÃO21.10.202309:48

Abençoado futebol que nos faz reparar no país real da interioridade e da insularidade, o país honrado, trabalhador, pobrezinho mas limpinho

TAÇA. Há todo um universo mitológico naquela que será a prova mais democrática e popular do futebol português. Grandes e pequenos juntos na mesma prova. Amadores e profissionais criadores de um mesmo espetáculo que, como se fosse um circo, anda de terra em terra para gáudio de um povo que apenas tem por hábito ver os seus ídolos na televisão.

Jornais, rádios, televisões e ainda esse mundo alucinante, diverso e disperso, das redes sociais, falam da existência de clubes que passam anos e anos no anonimato, cumprindo a sua função proletária de jogar um futebol simples, mas digno. São filhos de um deus menor. Representam a basesinha de uma indústria desportiva que não foge em desigualdade da estrutura social do país.

Tenho na memória o momento televisivo em que as câmaras captaram a euforia nas cabinas do Olivais e Moscavide quando se ouviu o nome do Sporting como adversário da Taça de Portugal. Não deixa de ser uma alegria aparentemente paradoxal, porque, do ponto de vista desportivo, cada um daqueles modestos jogadores de futebol, sabe que, salvo qualquer milagre, a temporada da Taça acaba aqui. Mas há sempre o sonho indizível de que o jogo com os leões os possa lançar numa carreira de verdade. Subir a um palco onde atua um dos grandes do nosso futebol é, já de si, uma conquista e uma glória. Daí a festa, antes da festa. Daí a sensação de chegada a uma terra prometida e que levava tempo em tornar-se real.

Esta é uma fase da Taça que, admito, não entusiasma especialmente, aqueles adeptos de coração de pedra de qualquer um dos grandes clubes. E, no entanto, para quem cedeu muitos jogadores às seleções, esta suave transição para o futebol faminto de vitórias e de pontos é desejável. É preciso retomar o ritmo e a exigência competitiva e os treinadores sabem que nem sempre se consegue mudar o chip com a facilidade com que se acende ou apaga a luz da sala.

Há um espírito de solidariedade na Taça. E uma alma lusa que adora ficar de bem com a consciência quando pratica boas ações. Daí que os jogos entre grandes e pequenos tenham sempre os mais modestos como visitados e os grandes senhores como ilustres visitantes. O que não deixa de ser uma falácia. Muitas vezes, os mais pequenos são tão pobres que não têm casa suficientemente digna para receber equipas profissionais. Por isso, pede-se uma casa emprestada e lá se vai o tal espírito de Taça e a festa de aldeia.

Apesar de tudo, a Taça faz vibrar o país real. O país da insularidade e da interioridade. O país honrado e trabalhador, pobrezinho, mas limpinho. O país desenhado em rugas e suores de uma luta quotidiana. O país de gente anónima e de uma vida severina. O país pequeno, mas, ainda assim, demasiado distante do Terreiro do Paço. O país dos retratos fiéis de Aquilino e de Torga. Pois abençoado futebol que nos faz reparar na existência desse país real, tão diferente do país telenovélico, onde os maus são castigados e os bons ganham sempre a felicidade eterna.

É curioso como ainda sobrevive, na Taça, esse lado tão romântico do futebol. Como ele resiste aos tempos, às modas, à modernidade dessa nova filosofia da era do vazio e do homem máquina. Como ele sobrevive entre os escombros das ideias de um desporto com ética e com princípios.

Festejemos, então, a Taça e o que ela ainda simboliza de valores e de resistência ao unanimismo dos gestos e dos atos de uma sociedade que, de tão uniformizada, cada vez mais estranha os diferentes e as diferenças. Daí o crescimento das intolerâncias e dos sectarismos. Ser diferente, mais do que estranhar-se, causa medo.