O silêncio dos inocentes

OPINIÃO15.02.202205:30

Toda a gente já falou sobre o que se passou no final do clássico... menos quem deveria falar

O futebol português viveu na sexta-feira um dos episódios mais negros da sua história recente. Digo recente porque desde os tempos em que se subornavam árbitros à luz do dia até aos processos criminais que hoje envolvem tanta gente da bola, ninguém se esquece das peripécias que aconteceram no in between. Mas aquele final de clássico foi tão perverso que fez manchetes na imprensa internacional. Muito triste.
Quem foi ao estádio e quem assistiu em casa ao que aconteceu ficou estupefacto com o crescer trágico daquela pouca vergonha. De então para cá, muitos profissionais ligados ao fenómeno têm comentado, escrito e falado sobre a sua versão dos factos. Também o povo - convém não esquecer, forte contribuinte da indústria - tem dito de sua justiça, um pouco por todo o lado. Com maior ou menor imparcialidade, com mais ou menos amor à camisola, todos partilham a mesma ideia: tudo aquilo foi simplesmente medonho.
Quem ainda não disse rigorosamente nada nem escreveu uma única linha sobre o assunto foi a Federação Portuguesa de Futebol, a Liga Portugal e o Conselho de Arbitragem. As três entidades que gerem o futebol, as competições profissionais e os árbitros que lá estiveram. Esse silêncio - o silêncio de quem tem a obrigação institucional de zelar pelo jogo, pelas competições e pela arbitragem - tem, para mim, uma ilação muito clara: são cúmplices e coniventes. É cúmplice quem, tendo responsabilidade ativa para intervir, escolhe não o fazer. E é conivente quem, tendo poder para atuar, opta por se esconder. Compreendo que seja mais confortável falar sobre momentos memoráveis ou projetos megalómanos. Compreendo que seja mais dignificante sublinhar feitos elogiáveis ou obras consideráveis, mas lamento: FPF, Liga Portugal e CA tinham que ter dado a cara neste momento! Tinham que ter assumido uma posição pública clara e inequívoca de condenação a tudo o que ali se passou. As três estruturas que tutelam as provas e alguns dos seus intervenientes perderam, mais uma vez (não foi a primeira nem a segunda) a oportunidade de se demarcarem de mais uma pouca vergonha no nosso futebol, não mostrando independência, coragem e poder.
Esta inenarrável falta de posição faz lembrar a daquele reitor que ignorava olimpicamente a pancadaria e bullying que acontecia na sua escola, por estar mais preocupado com as obras de ampliação que queria fazer nas instalações. É quando confundem acessório com essencial que subvertem a natureza do cargo para o qual se candidataram. Como se já não bastassem as trocas constantes de insultos entre dirigentes, como se já não fosse caricato e suficiente termos empresas a competir no lugar de clubes ou canais de clubes a transmitirem os seus jogos oficiais, como se já não fosse demasiado óbvia a falta de defesa pública dos pobres dos árbitros (perante o silêncio absolutamente inacreditável e reiterado da sua estrutura), só faltava mesmo que todos aqueles empurrões, agressões, insultos, ameaças, alegados roubos e balas a voar pelo relvado fossem agora respaldados por um voto de silêncio coletivo da parte de quem tem poder efetivo para intervir.
Há momentos de afirmação que não se repetem. Quando não acontecem, dizem muito sobre quem sistematicamente prefere refugiar-se nos intervalos da chuva. Tão feio.