MEMÓRIAS DE VÍTOR CÂNDIDO O ‘réveillon’ com Sergio Saucedo
Há 40 anos os clubes não tinham diretor de comunicação nem 'team-manager' para proibir o contacto e a ligação dos jornalistas com jogadores
Na noite da passagem de ano, estávamos em festa familiar quando, de repente, me veio à ideia um acontecimento ocorrido há precisamente quarenta anos. Trata-se de uma memória curiosa que revela bem como sempre foi o meu procedimento, no que respeita a cativar e a cultivar amizades com o próximo. Naquele dia 31 de dezembro de 1984, o argentino Sérgio Saucedo chegou a Lisboa para representar o Sporting. Passou o dia no Estádio José Alvalade, onde foi apresentado, e depois recolheu ao Hotel Alfa, em Sete Rios. E à noite, já com a minha família reunida para o réveillon, no Lumiar, pensei no Saucedo: «Será que alguém se lembrou de o convidar para a festa do fim de ano?»
E como naquele tempo não havia telemóveis, meti os pés ao caminho, avisando o pessoal: «Eu venho já. Não me demoro.» Saí de casa e fui num instante ao Hotel Alfa. Na receção estava o amigo Antonino, do Sardal, a quem perguntei pelo argentino: «Está lá em cima no quarto. Quer falar com ele?» Fez a ligação interna e passou-me o telefone: «Boa noite Saucedo. Sou Vítor Cândido, el periodista de A BOLA com quem esteve esta manhã. Queria saber se tem algum programa para a passagem de ano ou se aceita o meu convite para festejar com a minha família.»
O rapaz ficou bastante grato e até emocionado com a minha atitude: «Estou aqui no quarto, com minha esposa e minha filhinha, a pensar na família lá longe, em Buenos Aires. Por acaso até já pedimos para nos trazerem champanhe para logo brindarmos. Mas aceito o convite e fico muito agradecido.» E lá fomos até ao Lumiar. Perante a surpresa dos meus familiares, apresentei-lhes o convidado: «Este é o argentino Sérgio Saucedo, novo jogador do Sporting que chegou hoje a Lisboa, com a esposa Zuly e a filha Mary Fé. Eles vêm festejar o Ano Novo connosco.»
Curiosamente, nessa noite festejámos por duas vezes porque, quando chegou a meia-noite, Saucedo lembrou que no fuso horário de Buenos Aires ainda faltavam três horas para a festa. Pois bem, então, às três da matina vamos brindar novamente. Pela Argentina. E assim, logo no primeiro dia, arranjámos uma amizade familiar para toda a vida.
Acontecer agora era impossivel
Eram outros tempos. Isto agora era impossível acontecer. Os jogadores são escondidos e proibidos de contactar com jornalistas. Mas há 40 anos nos clubes não havia diretor desportivo, nem team-manager, nem diretor de comunicação para proibir o contacto ou a ligação dos jornalistas com jogadores e treinadores. Naquela altura, pela força das circunstâncias, adquiríamos confiança e amizade e ficávamos amigos chegados, eramos visitas de casa, para o convívio. Sobretudo na Quinta do Lambert, ali pertinho do estádio, a residência de muitos futebolistas do Sporting. Lá viveu Saucedo, com a mulher Zuly e a filhinha Mary Fé. E mais tarde chegou o cunhado, Mário Gil, jovem empreendedor, que mais tarde viria a ser dono do popular Bar 'Costa do Castelo', estabelecimento bem frequentado em Leça da Palmeira. Este meu amigo veio para Portugal com 18 anos… constituiu família e por cá ficou. Reside em Vila Nova de Gaia, sempre bem-disposto e folgazão.
O preferido de Héctor 'Chirola' Yazalde
Vem a propósito dizer que em Dezembro 1984, o mítico goleador Héctor Chirola Yazalde — Bota de Ouro, com 46 golos, em 1974 e Bota de Prata, 30 golos, em 1975 — apresentou-se no Sporting acompanhado pelo seu compatriota Saucedo. Trazia uma cassete com os 26 golos apontados pelo Deportivo de Quito, que o consagrou como melhor marcador do campeonato do Equador. O jogador ficou a prestar provas em Alvalade e Yazalde regressou à Argentina, afirmando: «Não sou empresário. Estou aqui porque sou um admirador do Saucedo e um amigo do Sporting. Gostava que ele ficasse. Acho que pode ser um bom reforço.» O treinador dos leões era o galês John Toshack que aprovou a sua contratação, justificando: «É um ponta de lança fisicamente forte, robusto, lutador e com bom pontapé. Gosto dele. Tem caraterísticas diferentes dos avançados que cá temos.» Referia-se a Manuel Fernandes, Jordão, Oliveira e Eldon.
Entretanto avançaram as negociações com o Dep. de Quito. Chegou a constar que o jogador já não vinha, porque o Sporting não tinha disponibilidade financeira para o pagar. Mas, por influência de Yazalde, houve acordo de verbas e afinal sempre veio.
Seis golos nos primeiros sete jogos
Saucedo estreou-se na 16ª jornada, com uma vitória (1-0) em Guimarães, fazendo parte do trio de ataque com Manuel Fernandes e Jordão. A verdade é que John Toshack garantiu-lhe a titularidade e ele correspondeu, revelando-se um bom reforço ao marcar seis golos nos primeiros sete jogos. Estava a entusiasmar, mas em Março uma lesão muscular motivou que não jogasse mais até final da temporada. Na época seguinte, com Manuel José, jogou 27 partidas e fez 5 golos. Esteve apenas duas épocas no Sporting, competindo com avançados carismáticos como Manuel Fernandes, Oliveira e Jordão, mas também Ralph Meade e Eldon. Para dar entrada a Mc Donald e Peter Houtman, acabou dispensado por Manuel José e assinou pelo SC Braga. Curiosamente, onde voltaria a encontrar-se com este treinador, também ele dispensado alguns meses depois, após duas derrotas: em Guimarães (1-3) e em Chaves (1-2) e um empate com Rio Ave (0-0), em Alvalade. Quem diria? Manuel José despedido um mês depois dos históricos 7-1 ao rival Benfica. O argentino representou ainda o Covilhã, na 1ª divisão, antes de prosseguir carreira no Cobras de Juarez, no México (1988). Deixou de jogar aos 40 anos, no Defensores de Zárate, o clube da sua terra natal, onde se iniciou.
Na velha redação de A BOLA
Sérgio Saucedo era um rapaz humilde, simpático, e tinha enorme admiração por Manuel Fernandes e Jordão. Nas poucas vezes que voltou a Portugal queria estar com eles. Para cultivar a nossa amizade, falávamos à distância. Frequentemente. Para nos atualizarmos ou para recordarmos tempos idos: a primeira entrevista para A BOLA, com o Ruah Mendes (porque falava bem espanhol); quando o levei a visitar à nossa velha redação, escada acima, sem elevador, para o apresentar, de surpresa, ao chefe Vítor Santos e ao senhor Homero Serpa; as almoçaradas com o mecânico Sereto, em Entre Campos; a convivência (na capital ou lá na aldeia) com amigos comuns, sportinguistas e até de outros clubes. Em Abril de 2018, Saucedo pediu-me que levasse a filha mais nova, Úrsula Saucedo (nasceu em 1987, em Lisboa, e tem dupla nacionalidade), a visitar o museu do Sporting. Claro que sim! E teve direito a reportagem na Sporting TV. Aliás, foi neste canal televisivo que Saucedo, desde a Argentina, falou pela última vez do seu Sporting. Foi em Setembro 2020, numa mensagem onde referiu a nossa amizade: «O primeiro grande amigo que tive em Lisboa, a primeira pessoa com quem falei, foi o Vítor Cândido, uma amizade familiar que perdura até agora», afirmou. Infelizmente o meu amigo Saucedo faleceu em Abril 2021. Inesperadamente, de ataque cardíaco. Tinha apenas 61 anos. Paz à sua alma. Estará sempre nas minhas memórias.