O Euro-2024 ficará ou não como um marco na evolução do futebol?
A Espanha foi a seleção mais aplaudida no Euro 2024
Foto: IMAGO

Análise O Euro-2024 ficará ou não como um marco na evolução do futebol?

OPINIÃO14.07.202410:00

Pontapés de saída longos, mais golos de meia-distância, muita flexibilidade posicional, pressão com referências individuais e proliferação das linhas de 3 e 5 - algumas tendências táticas na Alemanha

As grandes competições de seleções são, muitas vezes, marcos no que diz respeito a tendências táticas. Isto acontece não só porque são as grandes equipas que abrem caminho e influenciam as restantes, mas também por se tratar da grande montra do futebol mundial. Se, por vezes, as tendências podem ser transitórias e esquecidas, noutros casos podem marcar a história evolutiva dos sistemas e dos métodos de jogo.

Mesmo que as novidades não tenham surgido em âmbito de seleção — os curtos períodos preparatórios não ajudam —, a sazonalidade destas grandes provas ajuda a apalpar o pulso à evolução do jogo. Por exemplo, embora o WM tenha sido inventado pelo Arsenal de Herbert Chapman, a tendência ficou marcada nos Mundiais dos anos 30. A marca do aparecimento das linhas de 4 defesas, que quase nos habituámos a ver como cânone, surge em 1958, no primeiro Brasil campeão do Mundo, na Suécia. O futebol total de Rinus Michels e de Cruyff pode ter tido o seu advento no Ajax, mas deixou marcas através dos Países Baixos finalistas do Mundial de 1974 e 1978. É também impensável não associar Guardiola e o Barcelona aos anos dourados da roja, que venceram tudo entre 2008 e 2012.

É, portanto, com natural expectativa que se espera por ver a dinâmica dos melhores treinadores e jogadores do mundo, invariavelmente presentes nestas provas. Quais têm sido, então, as tendências táticas deste Europeu? Terão seguimento?

Bajrami festeja golo à Itália, marcado aos 23 segundos de jogo (Foto: IMAGO)

Rotinas de pontapé de saída

O golo mais rápido de sempre dos Europeus, marcado pela Albânia, surpreendeu toda a gente. Mais do que a oferta de Dimarco a Bajrami, importa lembrar que o lançamento para a Itália no seu terço defensivo proveio de... uma bola longa no pontapé de saída albanês.

Na primeira ronda do Euro 2024, mais de metade das equipas procurou rotinas de pontapé de saída que implicassem uma bola longa, ou na área, ou através de diagonais. Outros trouxeram ainda outras estratégias: por exemplo, a Polónia frente aos Países Baixos colocou vários jogadores de um lado, para iludir o adversário e jogar do lado contrário.

Numa era em que o jogo é analisado ao milímetro, e numa prova em que muitas equipas se apresentam com mais medo de perder do que com vontade de ganhar, talvez esta possa ser uma nova forma de criar desequilíbrios na estrutura adversária.

Xavi Simons marcou de fora da área à Inglaterra (Foto: IMAGO)

Remates de meia-distância

Dos primeiros 42 golos da prova, 12 (29%) foram marcados de fora da área. Os Europeus anteriores demonstram o quão estes números estão em contraciclo com a tendência evolutiva do jogo — 13,4% dos golos do Euro 2020 foram de fora da área. Em 2016 foram 15,7% (obrigado, Éder!).

Estes são dados mais alinhados com a realidade atual e, na verdade, demonstram que o tiro de longe é recurso em desuso. Na Premier League deste ano, apenas 11,5% dos golos resultaram destes remates. A baixa eficácia nestas ações e a proliferação do big data pode explicar porque se atira menos de fora da área. Contudo, porque é diferente neste Europeu?

Não há uma explicação clara. A mais óbvia é que se trata de uma anormalidade estatística que a longo prazo se anularia. Não parece absurdo, contudo, que esta possa ser uma estratégia para contornar blocos baixos e equipas que amarram o jogo até mais não o conseguirem.

João Cancelo a ocupar terrenos interiores, como médio, diante da Chéquia (Foto: IMAGO)

Flexibilidade posicional e criação de superioridade numérica

Há muito que se diz que o jogo parece evoluir no sentido do desaparecimento dos sistemas e talvez este Europeu tenha sido um passo nesse sentido. Foi cada vez mais recorrente vermos laterais que jogam por dentro, extremos que jogam como médios, ou médios que constroem como centrais ou laterais.

Este tipo de mobilidade ajuda a confundir marcações adversárias, mas principalmente ajuda a criar superioridade numérica em zonas-chave do terreno. Tomemos como exemplo João Cancelo como médio frente à República Checa, ou os ingleses Bellingham e Foden como extremos, mas na verdade a formar um quadrado na zona central com Rice e Mainoo, no jogo frente aos Países Baixos.

Austríaco Seiwald em momento de pressing sobre o turco Arda Guler (Foto: IMAGO)

Referências individuais na construção adversária

É cada vez mais frequente ver equipas a assumir o risco da referência individual na saída de bola do adversário. Neste Europeu, esta realidade foi frequente em equipas que optaram por pressionar alto, procurando encurralar o adversário em situações de 1x1 em praticamente todo o campo.

A ideia talvez tenha tido o seu epítome na Atalanta de Gasperini, com exemplo claro na final da Liga Europa, em que fez cair com estrondo o imbatível Bayer Leverkusen de Xabi Alonso (3-0). Contudo, teve continuidade neste Europeu: veja-se como a Sérvia ameaçou o empate frente à Inglaterra no primeiro jogo ou como a Áustria procurou quase sempre pressionar alto. Contudo, num torneio em que se joga de 4 em 4 dias, será possível apresentar índices físicos que permitam sempre este comportamento? Por outro lado, se o adversário for melhor no duelo individual, como resolver sem o coletivo?

Os três centrais de Inglaterra - Walker, Stones e Guéhi - em ação frente aos Países Baixos (Foto: IMAGO)

Linhas de 3/5 defesas

Depois de muitos anos em que as linhas de 4 defesas pareciam ser o paradigma para o futebol europeu, parece que as linhas de 3/5 vieram para ficar. A linha defensiva com 3 centrais, que deixa implícito que dois laterais estejam à largura com propensão ofensiva, parece apenas ter atingido mediatismo nos anos 80, com o 3-4-3 da Holanda e do Barcelona de Cruijff, ou com o 3-5-2 da Argentina de Maradona e de Bilardo.

Mais de metade das equipas do Euro 2024 (Portugal está entre elas) começaram o jogo, em algum momento, numa linha de 3 defesas. Recuemos a 2016: de toda a fase de grupos, apenas País de Gales e Itália jogaram assim. Esta realidade era pouco comum no Velho continente nos anos 90 (embora Jorge Jesus, inspirado por Cruijff, a tivesse trazido da Catalunha), e foi surgindo na Serie A italiana, quem sabe inspirada pelos sul-americanos. 

Claro está que vai um universo de diferença da trincheira georgiana em 5-3-2 ao 3-4-3 que a Inglaterra trouxe às meias-finais (um dos alas até era Saka).

A única certeza no futebol é a mudança. Grandes génios do passado inventaram ideias que hoje parecem ultrapassadas. Os jogos de elite do passado parecem agora demasiado lentos e previsíveis. Apreciar a complexidade do jogo é apreciar o seu carácter evolutivo e a sua mutação constante.