O desporto que não se vê e só se sente no Natal
Exemplo de ação solidária do plantel do Boavista, em 2022 (Foto Eduardo Oliveira/ASF)

O desporto que não se vê e só se sente no Natal

OPINIÃO03.01.202410:00

A solidariedade dura o ano inteiro; o problema é nosso, que tendemos a comover-nos apenas nesta altura de dezembro/janeiro

Assistir aos vídeos de Boas Festas de Liverpool e Atlético Madrid, entre muitos outros que nos entraram pelas redes sociais adentro nesta quadra, é uma experiência impactante que pode mesmo levar às lágrimas (foi um amigo...).

Achar que todos temos excelentes intenções nestas semanas e as esquecemos durante onze meses e meio tornou-se um lugar-comum. Como quase todos os lugares-comuns, este carece de alguma análise. E no mundo do desporto, felizmente, há muito por contar no que respeita a boas intenções e ações que duram todo o ano, anos a fio.

A preocupação com a responsabilidade social é transversal e longitudinal no mundo dos clubes, das federações, das ligas, das associações de várias modalidades. O futebol, como montra maior do desporto na Europa e em várias outras paragens, torna-se mais viral pelo Natal, mas há exemplos de sobra noutras latitudes — da Fórmula 1 à NBA, do ténis ao golfe. Talvez mais nuns que noutros, enfim.

Fazendo jus à regra jornalística da proximidade e falando de futebol, os exemplos abundam e não são tão recentes assim. A FIFA e a UEFA há muito que têm na área da responsabilidade social um ponto importante de foco. Um clube que participe nas competições europeias, por exemplo, é desde o ano passado obrigado a designar um responsável pela área, sem o qual corre riscos de falhar o processo de licenciamento da UEFA.

A Federação Portuguesa de Futebol e a Liga Portugal — esta através de uma fundação criada para o efeito, como sucede com alguns clubes — têm multiplicado iniciativas de responsabilidade social. E quando se fala de responsabilidade social não se pensa apenas no retrato da caridade que em ocasiões especiais, leia-se Natal, enche os corações das famílias ao serão, como se através dessas ações pudéssemos, todos, exorcizar as nossas consciências mais ou menos pesadas só porque vertemos umas lágrimas (foi um amigo…).

No dia-a-dia de quem está no terreno — e são tantos, esses que pouco se veem e não aparecem na TV — existem a luta antirracismo, a igualdade de género, a inclusão de minorias, o apoio a refugiados, a criação de condições de acessibilidade para pessoas com deficiência, a solidariedade com os velhos e as vítimas de violência, a recolha de fundos para lesados de catástrofes naturais, a possibilidade de emprego para pessoas em dificuldades, o carinho e o consolo nas secções pediátricas dos hospitais, os projetos de auxílio no plano da saúde mental.

A lista podia continuar, porque há gente que todos os dias se preocupa com isto, no mundo do desporto, sem pensar propriamente na bola que entra ou no recorde que não foi batido. É justo que nos lembremos que estas pessoas e estes projetos existem. Como existem os de sustentabilidade ambiental (regas, adubos orgânicos, painéis solares, reciclagem, reutilização de equipamentos, aproveitamento de águas pluviais, deslocações em grupo que substituem os automóveis particulares e se tornam mais verdes, entre tantas outras iniciativas).

É fácil apontar o dedo ao desporto, ao futebol em particular, pelas horas de media gastas em polémicas estéreis, pelo mau comportamento de alguns protagonistas ou — e muito justamente — por práticas absolutamente lamentáveis relacionadas com tráfico de seres humanos ou corrupção, que serão, esperamos, devidamente esclarecidas e sancionadas em sede própria, a Justiça.

Mas é importante tentar espreitar o outro lado. Lembrar que ele existe e que não é apenas na promoção da atividade desportiva entre a população que as instituições complementam ou (as mais das vezes) substituem as obrigações do Estado.

Dentro de sensivelmente um ano os vídeos de Natal vão aparecer de novo. E nós vamos comover-nos outra vez.