Não havia necessidade
'Livre e Direto' é o espaço de opinião semanal do jornalista Rui Almeida
Fui um dos cinquenta mil que, naquela noite quente de agosto de 2003, estiveram na inauguração do Estádio José Alvalade em versão de novo século, vendo o nascimento de uma lenda, de um jogador eleito para o estrelato, de alguém que ali estava para começar a marcar uma geração e a entrar para a história do futebol.
A qual (história), me lembra outro português, numa era em que os feitos eram gravados em fita ou bobine e cuja dimensão demorava uma eternidade a tornar-se global. Chegava, no final da década de oitenta ou durante os anos noventa, a Moscovo, Budapeste, Bucareste, Helsínquia ou Macau, e a primeira palavra que escutava era mágica e verdadeiramente universal: Eusébio.
Nessa altura, o orgulho crescia à razoável dimensão permitida e admitida pelo distanciamento e pelo equilíbrio jornalísticos, na mesma e exata medida que distintos companheiros brasileiros ou argentinos conversavam sobre Edson Arantes do Nascimento ou Diego Armando Maradona.
Um, Pelé, inundava o imaginário dos adeptos do futebol com a capacidade de superação que dele fazia campeão mundial, nas arrancadas fenomenais rumo às balizas adversárias e na simplicidade da relação que com todos mantinha, certo e seguro das suas humildes origens e do seu destino idêntico ao dos comuns mortais.
Outro, El Pibe, truculento na relação consigo próprio, problemático na medida e nas medidas do razoável e admissível, transpirava genialidade nos seus parcos 165 centímetros e tornava um relvado de futebol num passe permanente de mágica, imprevisibilidade e talento.
Dois dos maiores da história, tal como Eusébio, e como alguns outros que, igualmente universais, talvez não tenham ganho o Olimpo por este ou por aquele pormenor.
Voltemos, porém, à noite de 3 de agosto de 2003. Emergia outro sonhador da bola, criativo, rápido e disruptivo como poucos. Encantou o mundo — aí já com a dimensão da velocidade e da propagação das notícias e das reações que marca o século XXI. Tornou a ilusão realidade com o pedido expresso dos jogadores do colosso United de Manchester ao inigualável Alex Ferguson que a sua condição de Sir só ficaria completa se fosse a Lisboa buscar aquela pérola em desenvolvimento, pujante, possante, pujante.
Assim começou, verdadeiramente, o conto de fadas de um humilde jovem da Madeira, nascido das ruas e a encantar o mundo, com avenidas de adeptos a chorar pela sua genialidade e pela sua voracidade pelos golos, pelos títulos, pelos sucessos.
Cristiano é único na paleta (felizmente não uniforme ou pouco variada) de genialidade que o belo jogo nos trouxe ao longo dos anos. Dele se espera sempre um pouco mais, até que a imponderável custódia do tempo se encarregue de lhe conceder uma dourada e enriquecida retirada dos 105x68 metros que dele fizeram um dos mais emblemáticos e carismáticos embaixadores de Portugal pelas quatro partidas do planeta futebol.
Ao longo dos 7804 dias que entretanto vivemos, aprendemos que, muitas vezes, mais vale a diplomacia do desporto, alicerçada em valores sólidos de dignidade, reconhecimento e humildade, do que acordos, tratados ou assinaturas de políticos ou estadistas. Que um jogo de futebol faz mais do que um ano de conversações e que um golo festejado em uníssono representa o orgasmo coletivo de um povo, qualquer que ele seja, qualquer que seja a sua origem étnica, cultural ou histórica.
Se, há vinte e um anos, vos dissesse que Portugal estaria à beira de organizar um Campeonato do Mundo de futebol, todos riríamos de nós próprios, certos de que, embora não existissem cenários impossíveis, esse estaria decerto no patamar dos absolutamente improváveis.
Nessa altura, à beira de receber o Euro-2004, estávamos claramente no apogeu das nossas possibilidades, sendo também esse um momento para comemorar, fruto da qualidade organizacional, da diplomacia desportiva e da vontade concatenada de um amplo conjunto de pessoas (a maioria anónimas), mas que ficam com o seu desempenho na memória futura de uma nação.
Esta semana, no dia em que se formaliza o impossível, em que Portugal fica a saber que, num triunvirato histórico (com Espanha e Marrocos), vai mesmo organizar a fase final de um Mundial de futebol, espera-se do genial e icónico capitão da Seleção Nacional um momento fora de campo exatamente igual aos milhares que proporcionou ao longo dos últimos mais de sete mil dias. De comunhão, de gáudio, de exaltação de tudo aquilo que, na realidade, ele tentou — e conseguiu — fazer nos últimos 23 anos.
Dele temos uma parca e circunstancial declaração, surpreendente pela sua relevância comedida, mas logo justificada. É que, azar dos azares nesta contemporaneidade global, o país onde o maior nome do desporto português dos últimos largos anos exerce atualmente a sua profissão e, apesar da inexorável ditadura do tempo, ainda demonstra porque é quem é, esse país é igualmente anunciado como anfitrião do Mundial de 2034.
O melhor Mundial da história será aquele que o meu país organizar. Porque representa um esforço de talento, de qualidade, de reconhecimento, de energia positiva, de alento, curiosamente sem necessidade de um paralelo esforço de investimento financeiro nem de qualquer ostentação das arábias.
Do capitão de Portugal, porta-estandarte dos sonhos de milhões de compatriotas ao longo de mais de duas décadas, só precisávamos de ouvir isso. Mas não. Nesse mesmo dia ficámos a saber da sua boca que, afinal, é daqui a dez anos, num país que, até há bem pouco tempo, não respeitou, por exemplo, os mais elementares direitos das mulheres, que teremos o melhor Mundial da história.
De facto, não havia necessidade.
Cartão branco
Poucos imaginarão o esforço, prolongado ao longo de vários anos, que conduziu ao entendimento com as federações de futebol de Espanha e de Marrocos, para dar à luz a primeira candidatura transcontinental à organização da fase final de uma competição masculina de seniores da FIFA. A outorga do Mundial de 2030 aos três países é um legado de Fernando Gomes, de toda a equipa federativa e de uma enorme dose de competência, de diplomacia desportiva e de envolvimento de centenas de pessoas. Destaco António Laranjo, que não necessita de se colocar em bicos de pés para ser dos melhores negociadores e visionários do mundo do futebol.
Cartão vermelho
As claques do Sporting odeiam o seu clube. Só assim se justifica que, jogo após jogo, reincidam num comportamento execrável e prejudicial, sobretudo, para a imagem dos leões além-fronteiras. Um insignificante número de energúmenos que devia, obviamente, ser proibido de aceder a um qualquer recinto desportivo. Atenção que tudo isto se aplica aos iguais prevaricadores dos emblemas mais ou menos vizinhos, como é evidente.