Menos guerra, mais amor
Rafa (Imago/Pedro Loureiro)

Menos guerra, mais amor

OPINIÃO02.01.202409:49

Devemos ser mais exigentes. Começaria por exigir que se faça tudo por manter o Rafa, como gostaria que o Grimaldo tivesse ficado

Antes que alguém decida ir por aí, o texto desta semana não é sobre quem é mais Benfiquista. Os adeptos criticados neste texto não são inferiores a mim em nada. Provavelmente até são melhores indivíduos do que eu na maior parte dos aspetos, incluindo no Benfiquismo. De resto, quando penso nas pessoas a quem as críticas deste texto se referem, um montão de gente com que me fui deparando ao longo dos anos, encontro um pouco de tudo e, neles, encontro um pouco de mim também. Mas hoje apeteceu-me deitar isto cá para fora.

Faço-o em parte por alguma indignação com o tema da semana, a saída do Rafa, mas também por um motivo mais bonito. Senti-me inspirado por uma bonita iniciativa de Natal da Fundação Benfica, que abriu as portas de várias Casas do clube para receber pessoas que iam passar mais um Natal sozinhas. Fiquei genuinamente comovido com as imagens e lembrei-me que devia fazer mais pelos outros no próximo Natal, ou talvez já este mês. A mensagem, publicada nas redes sociais do Benfica no dia 31 de dezembro, assinava com uma frase simples mas poderosa: que em 2024 a família se mantenha mais unida do que nunca.

Uma família mais unida do que nunca. Pus-me a pensar no que pode ser feito para lá chegar, e nas armadilhas que às vezes surgem nesse caminho. Nunca fui fã de unanimismos estúpidos ou de endeusamentos, seja onde for. E, como muitos outros, acho que tem de existir espaço para a crítica, incluindo numa instituição com a dimensão e importância social e formativa do Benfica. Mas, e já aqui o disse quando Rui Costa foi eleito, na altura sem o meu voto, também não sou apreciador de guerras infinitas nem dos belicismos verbais que galvanizam alguns adeptos, às vezes parecendo mais movidos pelo ódio do que pelo bom senso.

Enquanto alguém que participou da forma mais ativa possível numa campanha eleitoral que tinha como adversário o então presidente Luís Filipe Vieira, e que se orgulha de o ter feito, sinto que devo fazer uma confissão. Passaram alguns anos e ainda hoje dou por mim a pensar no efeito que essa campanha teve no meu Benfiquismo e no de muitos outros sócios. Poucas coisas na minha vida passada a acompanhar o clube (que é, digamos, a maioria da minha vida) me deixaram tão doente como essa eleição. Nunca mais vi ou senti o Benfica exatamente da mesma forma, penso que por me ter desencantado com algumas coisas e ter perdido ilusões face a tantas outras.

Hoje, acho que conheço melhor o Benfica e mantenho uma enorme vontade de voltar a participar de forma mais ativa na vida do clube, seja numa campanha, dentro do Benfica, ou cá fora, a ser o melhor adepto que puder ser. Desde essa altura, aos poucos, uma das coisas que decidi praticar foi a aceitação, em especial desde que Rui Costa foi eleito com um resultado sem margem para dúvidas. Não se tratou de uma aceitação acrítica, mas antes de uma evolução da minha relação com o clube. Continua a interessar-me muito pensar ou discutir as dimensões institucionais, estatutárias ou organizacionais do clube, mas, se formos absolutamente francos, a maioria dos adeptos do Benfica estão, em qualquer momento das suas vidas, muitíssimo mais interessados em ver a equipa jogar bem e ganhar, em encher os estádios para cantar e conviver, em encontrar aqui uma fuga épica à banalidade da vida quotidiana, e em fazer desta experiência mais visceral, muitas vezes irracional, uma parte das suas vidas que levam para toda a parte e se lembrarão para sempre, assim como os seus filhos, os netos e quem mais vier. Pode às vezes parecer, mas não há nada de acrítico nisso. É mesmo o melhor combate que se pode travar na vida de um clube de futebol. E não há percepção gerada pela bolha das redes sociais, sempre aptas a travar mais uma guerra ou instruir os Benfiquistas sobre como devem praticar o Benfiquismo, que supere esta convicção.

Às vezes as guerras infinitas acontecem contra direções, outras vezes são movidas contra jogadores. Sem questionar a legitimidade de umas e outras, parece-me que às vezes somos pouco inteligentes a escolher as batalhas. Contra mim falo, que também as travei ao longo do tempo, umas mais estúpidas do que outras. Vem tudo isto a propósito do desprezo e da revolta que a aparente saída do Rafa, comunicada pelo próprio, parece ter suscitado em alguns adeptos. Permitam-me por isso aprofundar o tema da guerra infinita: existe uma corrente de clubismo no Benfica que só parece sentir-se preenchida no seu Benfiquismo se puder diabolizar e polarizar a discussão, qualquer discussão. A condição tornou-se uma espécie de clubismo performativo, segundo o qual alguns demonstram que são melhores adeptos do que os outros. É verdade que uma família em 2024 deve acomodar as mais diferentes sensibilidades e escolhas pessoais, mas às tantas já chateia. Ligo-me às redes sociais ou aos fóruns online e vejo muitos para quem hoje no Benfica só existem culpados. Julgo conhecer bem a doença. Emana do Benfiquismo, mas não é bem a mesma coisa. É uma estirpe de fundamentalismo ideológico que leva o adepto a convencer-se de que quem hoje trabalha no Benfica, seja qual for a função ou departamento, não faz o seu melhor, não tem competência, não vive para o clube, não sofre como os adeptos, não quer o mesmo que eles, não decide a pensar no bem coletivo e nas vitórias, e não quer exatamente a mesma coisa que os milhares que enchem os estádios ou os pavilhões. Como me costumavam explicar em criança, essa teimosia e fanatismo faz-nos fazer perder a razão. No final, não levo a mal, e ninguém é menos Benfiquista por ser assim. Mas chateia.

Desta vez a vítima da guerra foi um jogador acusado há anos de ter feito a cama a treinadores e de não gostar do Benfica, marginalizado por não publicar as coisas que devia no seu Instagram, criticado por não ser suficientemente dado aos adeptos, os mesmos que arrastam o seu nome na lama como se fosse a fonte dos insucessos do clube e de nenhuma das conquistas. A julgar pelas muitas reações que vi nos últimos dias, o Rafa tinha obrigação de ter marcado mais golos do que os 81 que marcou nos últimos 300 jogos, devia ter vergonha de ter feito apenas 60 assistências, podia ter fintado mais vezes, devia ter passado a bola, devia sentir vergonha de ter ganho apenas três títulos nacionais, devia ter decidido melhor, e devia ter sido mais isto ou aquilo, mesmo que praticamente ninguém que tenha coexistido com Rafa ao longo dos seus anos no Benfica tenha feito melhor do que ele. Bem vistas as coisas, creio que só mesmo a presença do Rafa em campo impediu o Benfica de conquistar as últimas edições da Liga dos Campeões.

Caro leitor, também eu acho que devemos ser exigentes. Começaria por exigir que se faça tudo o que for possível para manter o Rafa no plantel, da mesma forma que gostaria que o Grimaldo tivesse ficado por cá, mesmo que tivesse sido necessário quebrar algumas regras de racionalidade financeira. Se acabar por ir embora, que seja homenageado com a gratidão que merece, mesmo que não tenha correspondido exatamente ao ídolo canónico que todos desejámos que fosse. Eu vou sentir falta dele e acho que não estou sozinho. E, agora que arrancamos para um novo ano, desejo a todos os Benfiquistas que façamos essa despedida no Marquês de Pombal e em Dublin, com menos guerras e a família cada vez mais unida. Tenho a certeza de que nada mais irá interessar. Mais do que um sonho, este cessar fogo é uma ambição legítima e concretizável. Votos de um excelente 2024 a todos!