Manuel Sérgio: um livre pensador

Poder-se-ia cair na tentação de dizer que com Manuel Sérgio se encerra um ciclo, mas quem o fizer está a mentir

Com a morte de Manuel Sérgio desaparece uma figura única, pensador emérito, que sem complexos agregou o futebol à filosofia, dando uma pedrada num charco onde nadava, qual pescadinha de rabo na boca, fechada numa bolha que não passava dos estreitos horizontes onde julgava ter influência, alguma intelectualidade que procurava afirmação através da menorização do desporto, verdadeiros fundamentalistas do dogma que impunha uma divisão entre corpo e mente, que só fazem sentido enquanto complementares. Amigo desde sempre de A BOLA, particularmente do seu histórico diretor, Vítor Serpa, a quem concedeu a última entrevista televisiva, foi através das páginas do nosso jornal e do espaço com que prestigiou, com os seus escritos, o nosso site, que Manuel Sérgio fez chegar às massas muito do seu pensamento arejado, que arejado continuou até ao dia em que fechou os olhos.

Poder-se-ia cair na tentação de dizer que com Manuel Sérgio se encerra um ciclo, mas quem o fizer está a mentir. A inovação de Manuel Sérgio já medrou e fez escola, e a sua mensagem perdurará para além da efémera existência terrena que a cada um de nós cabe. Ficará para a história a parceria de Manuel Sérgio com Jorge Jesus, um académico que antes de o ser soube subir a pulso a corda da vida, e um empírico que mostrou ser muito mais do que aquilo que aparentava. Em muitas áreas, Manuel Sérgio rasgou novos padrões de pensamento a Jesus, e este, no Benfica, proporcionou a Sérgio a experiência prática que tanta falta faz a quem se especializa em teorizar.

Belenense dos quatro costados, Manuel Sérgio deve ficar como exemplo de alguém de quem pode dizer-se que houve um antes e um depois. Uma figura enriquecedora, que juntou dois mundos e colocou a nu a falta de dimensão de quem teimou (e alguns ainda teimam) em não perceber um dos principais fenómenos sociais dos últimos 150 anos, o desporto em geral e o futebol em particular.

Sem Manuel Sérgio, obviamente que nos sentiremos mais pobres. Mas o legado que nos deixa perpetuá-lo-á na nossa memória coletiva como alguém que viu antes dos outros, percebeu antes dos outros, e teve a coragem de assumir, e gritar aos quatro ventos, que a comunhão entre a academia e o desporto, entre a mente e o corpo, são inevitáveis, irrecusáveis, e inatacáveis. Com Manuel Sérgio, de facto, a doutrina aumentou e, mesmo sendo filósofo, a jurisprudência evoluiu.