Lutar por milhões com os milhões que mais ninguém tem

OPINIÃO17.08.202107:00

Não é com um novo emblema que se vende o Benfica nem é com um novo acionista que se acelera o crescimento

H Á muitas verdades que só a moderada racionalidade do futebol permite conceber. Uma das mais conhecidas reaparece sempre que um grande clube se endivida para comprar um craque. Não é preciso esperar muito para que essa figura mítica conhecida como o-especialista-em-marketing-desportivo afiance que o dito jogador já está pago. Não tem nada que saber: entre venda de camisolas, contratos de patrocínio e merchandising, vamos acabar todos ricos e campeões.
Quem se ficar pelas parangonas talvez acredite que os melhores futebolistas do mundo são negócios lucrativos ou financeiramente responsáveis para os clubes que detêm os seus direitos desportivos durante algumas épocas. É por isso que o futebol europeu e o atual proprietário do PSG vivem lindamente com as perdas previstas de 200 milhões de euros na última época desportiva, precedidas por um saldo negativo de transferências - entre 2011 e 2020 - a rondar os 800 milhões de euros.
O problema é idêntico aos foras de jogo: os dos outros parecem sempre mais escandalosos do que os nossos. Mas o facto é que eu sou tão adepto como o adepto do PSG e sei que não há nada que uma Ligue 1 ganha ao pé coxinho a jogar para o espetáculo, ou uma Liga dos Campeões arrancada do palanque pela força bruta do investimento, não resolvam no balancete emocional de alguém que ama o seu clube. No final, os milhões de adeptos do PSG são como todos os que se apaixonam: querem é celebrar vitórias, de preferência inebriados pelo futebol praticado.
É mesmo assim. A vida é demasiado curta para alguém dizer que não a um trio Messi-Neymar-Mbappé e nenhum adepto sincero rejeitará vê-los no seu clube por motivos que se prendam com racionalidade financeira. Se porventura encontrarem algum adepto do PSG sóbrio nas ruas de São Petersburgo a 28 de maio de 2022, dia de final da Liga dos Campeões, talvez esse adepto responda que o dono do clube tem bolsos demasiado fundos para que o plano falhe. E talvez tenha razão, ou talvez aquela noite eterna valha por todas as loucuras.  
O que este caminho de capital ilimitado e unfair play financeiro diz sobre os restantes clubes é assustador, mas também desafiante. É absurdo poder vir a defrontar uma equipa cujo trio atacante representa um custo total superior ao orçamento de boa parte dos clubes que se apresentarão nessa mesma prova? Sim. Se todos queremos ver isso a acontecer? Não tenho grandes dúvidas, mais que não seja para lamentarmos o sucesso do Golias.
 

«Não conheço ninguém intelectualmente honesto que tenha visto uma multidão de benfiquistas e não reconheça a sua força bruta»


O que é mais difícil perante esta realidade do futebol? Não tenho dúvidas: ser do Benfica. Não é fácil compreender o lugar que o Benfica ocupa hoje nesta encruzilhada. Não é fácil quando se é adepto de um clube que fez mais de 1000 milhões em receitas com vendas de jogadores, que gastou outras tantas centenas em muitos outros, que à data de hoje continua a ostentar uma folha de cálculo aparentemente imaculada, mas que teima em reservar os seus maiores feitos para a alta finança, deixando os acionistas mais fiéis - os sócios e adeptos do clube - à mercê do baixo futebol, umas vezes em Portugal, quase sempre nas provas europeias.
Não é fácil porque, bem vistas as coisas, o Benfica é um dos clubes que reúne melhores condições para aspirar a muito mais. Para isso, no entanto, é preciso saber concretizar o potencial, e fazê-lo de forma realista. Não é com um novo emblema que se vende o Benfica nem é com um novo acionista que se acelera o crescimento. A marca Benfica é, há muito, inequivocamente global, mas tem vindo a afugentar milhões de adeptos por uma razão de força maior: nenhum marketing consegue mascarar eternamente um produto fraco. Não há que ter medo de falar sobre isto. O termo produto parece sugerir um mercantilismo excessivo da coisa, mas a minha intenção é também romântica. O que deve determinar esse produto?
A qualidade do espetáculo. Bom futebol é bom futebol em qualquer parte do mundo. Mau futebol também. Quando um investidor americano sugere ser capaz de aumentar as receitas do Benfica em matéria de conteúdos e áreas adjacentes, perceba-se que só o poderá fazer com um conteúdo de qualidade muito superior ao que temos visto em épocas anteriores.
Os intérpretes. É fundamental que o futebol praticado pelo Benfica tenha intérpretes com histórias que enriquecem o plantel, sejam estes formados no clube ou recrutados em outros mercados. Sejam quem forem, devem chegar não apenas para jogar no onze mas para ajudar a fortalecer uma identidade do clube. Só assim as pessoas reconhecem os atributos de uma marca. Só assim mais pessoas se lembrarão de nós.
A capacidade de restabelecer a memória coletiva dos adeptos através de um presente de vitórias. Não podemos celebrar mais décadas sem um título, sem a capacidade de tudo fazer para criar momentos decisivos na nossa história. Nenhum clube pode passar demasiado tempo sem ganhar onde se fez gigante, sob pena de se tornar cada vez menos o clube que venceu nesses palcos e cada vez mais outra coisa qualquer.
Por último, a emoção proporcionada. Não conheço ninguém intelectualmente honesto que tenha estado num Estádio da Luz cheio ou tenha visto uma multidão de benfiquistas e não reconheça a sua força bruta. Esta dimensão é, diria, a única que permanece imutável ao longo de mais de 117 anos de vida. Importa fazer-lhe justiça.
Há seguramente outras dimensões que tornam uma instituição mais respeitada por todos e que tornam a respetiva marca mais forte, mas não é dessas que me apetece falar hoje. Amanhã só quero que sejamos novamente grandes perante um adversário europeu de outros tempos em que éramos temidos por toda a Europa.
Ser novamente grande no futebol europeu não só será difícil como parece cada vez mais improvável, só ao alcance de uns poucos. Mas é a tudo isso que a estrutura e os nossos jogadores devem aspirar. É isto que lhes deve ser incutido e exigido, para que se cumpra novamente o Benfica. Se assim for, talvez sejamos um pouco mais fracos na folha de cálculo, mas maiores em tudo o resto. É essa a maior força de uma marca: ser recordada de forma apaixonada por todos. Como dizia uma campanha de publicidade que ajudei a criar há alguns anos para celebrar os adeptos do meu clube: esses são os milhões que mais ninguém tem.