Kokçu ajudou Roger Schmidt
Orkun Kokçu e Roger Schmidt. Foto: Eduardo Oliveira

Kokçu ajudou Roger Schmidt

OPINIÃO21.03.202415:00

Se a razão estivesse toda de um lado, nenhuma discussão durava mais do que cinco minutos... Mais uma página do Livro do Desassossego

No mar revolto em que se podem transformar os meus pensamentos, dou por mim a pensar que ainda vamos chegar à conclusão que Kokçu prestou um favor a Schmidt com a entrevista que deu à publicação holandesa De Telegraaf. Num ápice, o treinador deixou de ser o foco principal da contestação e viu o seu estatuto reforçado. Se Kokçu entendeu que o ambiente de crispação entre os adeptos e o treinador lhe conferiam terreno fértil para plantar o desabafo e colher solidariedade dos benfiquistas, já chegou à conclusão que, em termos de futebol, Portugal sempre foi um país de direita: o adepto põem-sempre ao lado do patronato, no caso, o Benfica e a sua imagem. Ironia das ironias: os adeptos que condenam Kokçu por ter discordado publicamente de Schmidt são os mesmíssimos que brindaram o treinador com uma assobiadela nunca ouvida e lhe arremessaram objetos por uma simples substituição!

Pensemos um pouco na nossa vida profissional: quem não sentiu já que não estava a ser valorizado pelo seu superior? Ou que o chefe foi injusto? Engolir em seco faz de si melhor profissional? Se engolimos em seco é por medo das represálias, não é por entendermos que é o mais correto em prol da empresa e do espírito de grupo. E é aqui que me coloco ao lado de Kokçu antes mesmo de avaliar se tem ou não razão: ele deu uma entrevista que foi meticulosamente pensada; deu a cara e não mandou recados por ‘fontes ligadas ao jogador’; foi ponderado no tom; assumiu as consequências. Respeito-o por não ter pedido desculpa, neste tipo de situações, por norma cheiram a falsidade e rabinho metido entre as pernas. Mostra personalidade. Tenha ou não razão.    

A febre é um aliado do corpo

Deslealdade não é assumir publicamente discordâncias. Deslealdade é ser hipócrita e boicotar o esforço de uma equipa. Não são as declarações de Kokçu que podem provocar um efeito negativo no balneário. O mensageiro não criou um problema, o mensageiro revelou que existe um problema. Pessoal. E não é por a mensagem ser pública, privada ou guardada apenas para si que Kokçu está mais ou menos comprometido. Comparo o desabafo de Kokçu com um sintoma febril. A febre é forma que o corpo tem de comunicar e passar a mensagem de que algo está mal e nos obriga a ir em busca da causa e da solução para o problema. E é neste diagnóstico, e não na febre, que o Benfica tem de se preocupar.

Numa liderança forte não há melindres, apenas argumentos. O Benfica deveria estar menos preocupado em fazer ver ao médio turco que errou ao assumir a sua opinião publicamente e mais em explicar-lhe que está errado na análise. Se Kokçu for um caso isolado, fica a falar sozinho. Mas se não for o único a pensar assim, entre dois limites é mais útil ao Benfica uma crítica assumida que permite o combate ao problema do que um descontentamento escondido. Kokçu tem é de ser avaliado pela qualidade do treino, pelo comprometimento, pelo cumprimento das instruções do treinador, goste ou não delas. Se for aprovado nestes critérios e chumbar apenas no embrulho de uma entrevista, Kokçu só será um problema se o Benfica quiser que seja.

Três conselhos a Kokçu

Kokçu garante que, antes de falar publicamente, expôs os seus argumentos a Schmidt. É um exercício interpretativo, mas não concluo da entrevista que foi egoísta e pensou apenas em si. Acho que foi mais um exercício de defesa e explicação perante quem, em Portugal, o considera um flop e questiona os 25 milhões pagos pelo Benfica; e perante quem, nos Países Baixos, não entende a razão de não estar a brilhar ao nível que o levou a ser considerado o melhor jogador do campeonato na mais unânime votação de sempre. Passou de menino bonito e idolatrado para um clube e um país onde era um perfeito desconhecido. E sentiu isso.

Eu entendo que Kokçu se sinta confuso. Schmidt nem sempre foi linear. Em apenas um mês foi médio centro ao lado de João Neves,  médio ofensivo no apoio ao avançado, médio esquerdo e… suplente. Mas mesmo entendendo tudo, três conselhos deixo a Kokçu:

1 - Não se menospreze, assumindo, ainda que sem o perceber, que só pode render onde se sente mais confortável em função das suas características.  

2 - Leia a brilhante entrevista que Bruno Fernandes concedeu a A BOLA, mormente na parte em que ele explica como a necessidade de se ajustar a diversas posições o obrigou a evoluir e a tirar partido de outras características – e a cooperar melhor com os companheiros em campo – e como se pode partir de uma posição mais fixa e recuada para se ser mais livre do que nunca;

3 - Peça conselhos a Aursnes, o segundo melhor jogador do último campeonato – para muitos o melhor – numa posição que deixou de ocupar esta época. Ainda assim, se não é o melhor anda lá perto como melhor lateral-direito do campeonato e um dos mais competentes laterais-esquerdos.

Kokçu tem de respirar fundo. Não tem de responder pelo preço que o Benfica pagou para o contratar. Mas tem uma palavra a dizer quanto ao preço que o Benfica vai pedir por ele.