Inimigos de ocasião
Virgílio, capitão do FC Porto, oferece lembrança a Fernando Caiado, capitão do Benfica, antes do jogo de inauguração do Estádio do Sport Lisboa e Benfica, em 1954. Foto: ASF

Inimigos de ocasião

OPINIÃO29.02.202415:00

Se a equipa está em crise, que se desvalorize, é fantasia do inimigo. Se alguém sente o ‘status quo’ ameaçado, que se valorize, é o inimigo

A propósito do aniversário dos 120 anos do Benfica e de um mergulho em edições antigas de A BOLA, um regresso a um passado ainda recente na longa linha do tempo mas, provavelmente, já esquecido pela larga maioria de nós suscitou reflexão que partilho.

Já vai a caminho dos 70 anos a inauguração do Estádio do Sport Lisboa e Benfica, numa celebração para a qual contribuíram mais de três mil atletas de 54 clubes.

Portugal era um país atrasado, nesse ano de 1954 morreram 5.338 pessoas de tuberculose, das quais 656 crianças com menos de cinco anos, 29.943 portugueses (isto só números oficiais) emigraram para o Brasil, país que mais acolheu aqueles que deixaram Portugal em busca de uma vida melhor, havia 6.275 médicos e 3.095 enfermeiros no País e 34.942 beneficiários da Caixa Geral de Aposentações.

Estamos longe, aí concordamos todos, de sermos um país na primeira linha de desenvolvimento humano, social, cultural e económico, mas o caminho do progresso foi-se fazendo.

Em 2021 ainda morreram 151 pessoas por tuberculose, ainda emigraram cerca de 12 mil pessoas para o Reino Unido (então o país que mais portugueses acolheu), em 2022 havia 60.390 médicos e 81.799 enfermeiros e 648.357 beneficiários da Caixa Geral de Aposentações.

Em 1954, o FC Porto foi o convidado de honra do Benfica para a inauguração do Estádio do Sport Lisboa e Benfica, retribuindo a gentileza aos encarnados, que estiveram na inauguração, dois anos antes, do Estádio das Antas.

«O FC Porto prometera que viria à inauguração do Estádio do Benfica - e a gente do Norte não falta à palavra. Ei-lo em verdadeira massa, a desfilar perante milhares de benfiquistas agradecidos pela deferência. Foram 100 os atletas que desceram à capital», lia-se em A BOLA do dia 2 de dezembro de 1954.

O Sporting teve «a representação mais numerosa» e os leões «foram recebidos com vibrantes ovações e sinceros vivas». A Direção dos leões, presidida por Góis Mota, desfilou no estádio novinho em folha para «cumular a gentileza».

Se desapareceram alguns dos males de um país agrilhoado pela ditadura, também desapareceu, nalguns casos, o melhor do espírito desportivo.

O processo civilizacional, nos nossos dias, parece ameaçado, terá mesmo retrocedido, não apenas no Desporto mas também na política. Mas, voltando ao Desporto, que é disso que falamos, figuras que por cá andam há tanto tempo continuam a alimentar e reforçar práticas e mentalidades que casam pouco ou nada com os nossos dias.

Se há agressões e medo em assembleias gerais, que se desvalorize, até parece que se andou aos tiros, se a equipa de futebol está mal, que se desvalorize, são fantasias inventadas pelos inimigos, se alguém se sente ameaçado no status quo, então que se valorize, são coisas de inimigos.

São, no fundo, coisas de outros tempos. Há 70 anos talvez ninguém pensasse nelas. Veremos se demorarão muito a desaparecer. Já não teremos de esperar assim tanto para saber.