Indemnização de Rafael Leão
No desporto a parte fraca é o empregador e o jogador é tratado como a parte mais forte
NA tarde de 15 de maio de 2018, «um grupo de várias dezenas de homens, de cara tapada e com algum vestuário ligado a claques do Sporting» invadiu a Academia do Sporting. Invadiu, vandalizou, agrediu jogadores e equipa técnica.
Bas Dost, Acuña, Rui Patrício, William Carvalho e Battaglia foram os jogadores mais visados. Tratou-se, por isso, de uma situação muito séria, de enorme violência e que indiciou uma possível falta de segurança nas instalações do Sporting. E foi com esse o pressuposto que vários jogadores invocaram justa causa para rescisão do seu contrato de trabalho desportivo: Rui Patrício, Rafael Leão, Daniel Podence, Gelson Martins, Bruno Fernandes e Rúben Ribeiro saíram em litígio. De uma forma ou de outra, todos, exceto Rúben Ribeiro e Rafael Leão, chegaram a acordo com o clube. Uns voltaram, outros chegaram a acordo extrajudicialmente - pagaram total ou parcialmente a cláusula de rescisão.
Centremo-nos em Rafael Leão e na cronologia dos acontecimentos: o jogador rescindiu o contrato enviando uma carta ao Sporting e foi junto do Tribunal Arbitral do Desporto em Portugal (TAD) pedir a declaração de que o mesmo foi rescindido com justa causa, solicitando ainda uma compensação de 300 mil euros. O Sporting apresentou a sua contestação pugnando pela incompetência do TAD e pela competência dos órgãos da FIFA para decidir a matéria + reconvenção (é o autor quem, afinal, deve).
O TAD considerou-se competente e deu razão a Rafael Leão, mas também ao Sporting quanto aos pedidos de cada um - 40 mil euros para o jogador e €16,5 M ao Sporting. Houve recursos até ao Constitucional e outras questões processuais que, entretanto, foram resolvidas definitivamente.
Sem esperar, o Sporting avançou para a FIFA Dispute Resolution Chamber (DRC) que, em primeiro lugar, recusou apreciar a ação do Sporting por entender existir litispendência, ou seja, um processo já existente a correr em Portugal. O clube recorreu ao Tribunal Arbitral du Sport (TAS), em Lausanne - a instância de recurso das decisões da FIFA DRC - pedindo a condenação em indemnização, bem como a responsabilidade solidária do Lille - o que quer dizer que o Sporting pode exigir o pagamento a qualquer um dos devedores, pela totalidade.
Em fevereiro de 2022, o TAS deu parcialmente razão ao Sporting - quanto à responsabilidade solidária do Lille - decidindo que a competência para determinar o montante concreto da indemnização caberia à FIFA DRC.
Sem esperar, tendo o processo em Portugal transitado em julgado, o Sporting decidiu executar a decisão arbitral do TAD (Portugal), recorrendo ao Tribunal de Milão para o efeito, tendo este ordenado depositar parte do salário do jogador para que a dívida ao Sporting comece a ser paga.
À época, Rafael Leão ganhava cerca de 5 mil euros/mês. Aliás, ainda hoje não é claro que em toda a sua carreira o jogador venha a ganhar a verba que deve ao clube verde e branco. Mas a justiça foi clara: terá de pagar €16,5 M ao Sporting aos quais acrescem juros de mora - o valor à data ronda já os 20 M€.
Como pode isto acontecer sabendo-se que em Portugal (art. 47 nº 1 da Constituição) e na União Europeia, a liberdade de trabalhar é um direito de todos, e inclui a liberdade de rescindir o contrato, na maior parte dos casos com uma indemnização igual ao período de pré-aviso em falta?
A única resposta é que o futebol é diferente. Até porque a própria regulação do contrato de trabalho desportivo assegura a liberdade de trabalho (art. 19), referindo o seu nº 7 que não será devida qualquer compensação pelo praticante se o contrato for resolvido com justa causa. A mesma justa causa que o TAD veio considerar que Rafael Leão não teve.
A situação, do ponto de vista estritamente laboral, é muito discutível. O conceito de justa causa é hoje um conceito bem estabelecido na jurisprudência portuguesa, e inclui, certamente, o direito à segurança no trabalho.
Porém, dentro do sistema estabelecido no mundo do futebol, a decisão do TAD tem sentido. Aplicou as regras previstas para a cessação do contrato de trabalho desportivo (art. 23 e ss da Lei do Contrato de Trabalho Desportivo) e que também estão presentes, ao nível da regulamentação desportiva, no artigo 17 do Estatuto e Transferência de Jogadores da FIFA. E estas regras são muito diferentes das do contrato de trabalho de qualquer um de nós.
No desporto a parte fraca é o empregador e o jogador é tratado como a parte mais forte. E a lei reflete isso mesmo: procura-se proteger o clube de uma rescisão sem justa causa, porque o jogador, ao contrário de um de nós, não pode sair quando quer.
Ficamos então à espera da decisão da FIFA DRC para efetivo montante da indemnização a pagar pelo Lille pela responsabilidade solidária - o clube recorreu, entretanto, para o Tribunal Federal da Suíça - mas o futuro deste caso não parece nada fácil para Rafael Leão porque o direito ao golo, desta vez, é do Sporting.