Começou a relatar no quintal da mãe, com caixas de sapatos a fazerem de rádio
No início da década de 90, viajar entre Évora e Lisboa não era jornada fácil e rápida, como hoje. Para um lado a autoestrada chegava a Setúbal e para o outro o comboio ao Barreiro, de onde depois era preciso apanhar barco para o Terreiro do Paço.
O Fernando Emílio — que, como o filho Nélson recordava ontem, brincava em criança com caixas de sapatos a fazer de rádio e pacotes de pomada a fingir de auscultadores para fazer os seus relatos de futebol no quintal da mãe, perto de Montemor-o-Novo — era, nessa altura, um dos mais conceituados relatadores desportivos do País. Mas para sorte de vários miúdos continuava a viver em Évora. E porquê a sorte? Porque em muitas ocasiões os amigos do Carlos (o outro filho — o Nélson não liga a futebol) conseguiam uma boleia a meio da semana para verem jogos europeus, que nesse tempo eram sempre à quarta-feira. Uma ida e volta a Lisboa sempre a rir, já nesse tempo, com a graça natural do Fernando Emílio.
Também me calhou em sorte uma ou outra dessas aventuras noturnas rumo à capital e regresso a casa a horas impróprias.
Anos mais tarde, reencontro o Fernando Emílio em A BOLA. «Estás mais magrinho, tu!», atirava invariavelmente ao ver-me, perante a evidência de relevantes ganhos de estrutura corporal do jornalista em relação ao estudante que ele conhecera quase criança. Falávamos do Nélson, do Carlos, dos netos que entretanto chegaram e, claro, de ciclismo. Se nunca cheguei a perceber tanto quanto devia sobre a modalidade não foi por falta de paciência do Emílio. Mas eu, na verdade, preferia falar de jornalismo com ele. Da busca da história, do constante — às vezes quase obsessivo — acompanhamento que fazia da sua especialidade (que também já tinham sido o futebol e o hóquei em patins). E de Évora, claro.
Nos últimos tempos voltámos a um contacto mais recorrente, sobretudo por telefone. Ele já estava doente mas não parava de enviar matérias de ciclismo para o jornal. Debilitado, mas perfeitamente lúcido e, voilà!, sempre com uma piada na ponta da língua.
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Das últimas vezes que falámos, porém, não havia grandes motivos para rir: ele conhecia ao detalhe os meandros do flagelo do doping no tão amado ciclismo português e não hesitou em escrevê-los. Senti que lhe sangrava qualquer coisa da alma, mas o jornalismo vinha sempre primeiro.
Cada uma das (tantas e tantas) pessoas que se cruzou com o Fernando Emílio tem pelo menos uma história engraçada para contar. Foi assim ontem, no velório dele, mas já era assim há muitos anos quando se juntavam repórteres com alguns quilómetros de viagens pelo Mundo nas pernas. E se se juntava gente da rádio lá vinham as glórias da velha guarda para rirmos todos um pouco.
Morreu em paz, ao lado da família, e por isso o Nélson e o Carlos, ontem, eram capazes de sorrir.
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