Falemos de Pierre de Coubertin

OPINIÃO14.02.202106:15

Um homem que acompanha o crescimento da imprensa e que defende um «ensino superior operário»

Este artigo não vai abordar , conscientemente, o momento Trump que vive o futebol português , nem esmiuçar graves atentados à privacidade e à dignidade desportivas . Como se o fair play fosse , tão só, para exibir em camisolas ou em instantes televisivos.  Nos EUA, o Senado analisa ações e omissões do seu ex-Presidente. Por cá , e no nosso futebol, a incerteza é muita , a angústia financeira imensa e a não proteção da indústria bem perturbante. Bem sabemos que a luta pelo acesso à Europa que dá milhões potencia discursos e atitudes que, de outra forma e em outras circunstâncias, nos EUA levaram ao assalto ao Capitólio. Por cá só a perda de pontos pode levar, a prazo, a uma relativa calma . Bem necessária e nas vésperas de mudanças de rostos em determinados palcos da realidade desportiva lusitana. Mas sem ignorarmos na perda de pontos as garantias jurídicas que importa salvaguardar, tendo presente, necessariamente, a jurisprudência do Tribunal Constitucional quanto ao artigo 214º. do Regulamento  Disciplinar das competições organizadas pela Liga Portugal. E num dos processos é o Futebol Cube do Porto SAD que tem ganho de causa… nessa bem alta instância ! Falemos,  então, e em ano de novas incertezas quanto à efetivação dos Jogos Olímpicos de Tóquio,  do homem que os concebeu e idealizou!   

Escrever, assim,  acerca de Pierre de Coubertin é percorrer a segunda metade do século XIX e o primeiro terço do século XX . Não é apenas sentir a profundidade do homem que nos trouxe os Jogos Olímpicos da era moderna. É percorrer uma bibliografia imensa em que o Direito é o princípio - com escritos acerca do Direito Administrativo , da Constituição americana e das Constituições francesas - mas também acerca do Futuro da Europa  (1900) ou acerca do Valor moral do futebol (1907). Ou um anterior (1894!)  com o sugestivo título, Napoleão e o futebol! Sem esquecermos um artigo de 1911 em que aborda A campanha contra os Jogos Olímpicos ou em 1917 uma reflexão acerca de O que é o olimpismo. Afinal o alfa e o ómega da sua vida. Onde não falta uma reflexão sobre Os desportos e a colonização ou uma bem mais extensa, em Dezembro de 1905,  em que aborda A educação dos adolescentes no século XIX! E nada como reler, de 1930, A Carta da Reforma Desportiva, em que defende uma distinção clara entre «cultura física e educação desportiva» por um lado e uma «educação desportiva e competição por outro», para além do «desenvolvimento de uma medicina desportiva com exames aprofundados das características físicas do individuo»! Ler Pierre de Coubertin é reconstruir o jurista e o homem de história, o pedagogo e o cidadão da imprensa escrita e livre, o conhecedor da Inglaterra e o interessado pelos Estados Unidos da América, o aluno da Companhia de Jesus e aquele que vive e sente a Confederação Helvética! E ainda teve tempo para uma bem interessante reflexão acerca de Portugal, as Cruzadas e os Descobrimentos - A missão de Portugal - que encontramos numa Antologia de Pierre de Coubertin paga pelos Comités Olímpicos da Grécia, da Suíça, da Suécia, da Letónia, do Egito e de Portugal no momento dos seus 71 anos.
Pierre de Coubertin, parisiense de origem, de uma família aristocrática descendente de Fernando III de Castela, vive o último quartel do século XIX ( nasce em 1863) e morre em Genebra nas antevésperas da Segunda Guerra Mundial (1937). Acompanha algumas das grandes mudanças  na Europa, como a unificação italiana e a unificação alemã. Ele que estudara na Academia Militar e que depois se matriculara na Escola de Ciências Políticas que lhe daria acesso, acreditava, à carreira diplomática. Falhando este  acesso volta  a estudar, agora Filosofa e História, e aqui, em particular a Antiguidade Clássica . Sempre a história e com a consciência que as elites francesa e europeia não ignoravam, por exemplo, a capitulação da França na sequência da guerra franco-prussiana. Sem esquecermos que nos anos imediatos ao seu nascimento outros conflitos como a guerra entre a Dinamarca e a Prússia (1864) e também a Guerra Austro-Prussiana (1866). Mas Pierre de Coubertin acompanha o imenso salto industrial e comercial no centro da Europa, como por exemplo, a multiplicação dos barcos a vapor a cruzarem o Reno e com as estradas a serem consideradas «as vias e as artérias do corpo político». É o momento do grande salto do lazer com hotéis e restaurantes a serem construídos e a descoberta de locais aprazíveis, como as praias e as estâncias de montanha. E com tudo também a proliferação de revistas e jornais  e,  a par,  as mudanças pedagógicas que chegam do outro lado da Mancha, o crescimento da prática desportiva e a exportação dos desportos. É neste singular quadro, sem esquecermos a redescoberta de África e , logo, da sua ocupação, que Pierre de Coubertin  concebe a restauração dos Jogos Olímpicos - ao mesmo tempo da redescoberta de extraordinários vestígios em Olímpia pelo arqueólogo e investigador alemão Ernst Curtius -  e com eles a consciência da relevância e importância dos direitos humanos, do desporto como catalisador da resolução pacífica de conflitos - tipo permanente trégua olímpica - e do papel  diplomático - de verdadeira diplomacia e de concreto soft power - que os Jogos, agora os da era moderna, poderiam  assumir, e logo, protagonizar no transição do século XIX para o XX!  Sem ignorarmos, neste tempo que  atravessamos que na década de 70 do século XIX havia surtos de cólera e de febre amarela pela Europa - o nosso Rei D. Pedro V morre em 1861 vitimado de febre tifoide - e que a tuberculose era um dos dramas quotidianos na Europa, e logo em França. Basta recordarmos que Alexandre Dumas Filho publicou, no ano do Manifesto Comunista (1848), A Dama das Camélias que retrata uma paixão imensa e intensa e em que uma das personagens, Margarida, morre de tuberculose. O livro que chega no século XX ao cinema (1936), com Greta Garbo numa magistral interpretação, poderia ser replicado em similares histórias de Victor Hugo ou Chateaubriand, com o primeiro a contagiar com tuberculose a Fantine d’ Os Miseráveis. 

É neste quadro que nasce,  cresce  e se movimenta Pierre de Coubertin. Um aristocrata, economicamente independente. Um idealista assumido e um universalista para aquela época. Um enciclopedista e que combina o gosto da geografia com o apetite da retórica. Um homem que acompanha o crescimento da imprensa e que defende um «ensino superior operário». E este  idealista, bem voluntarista, que viveu as guerras que dilaceraram o centro da Europa durante séculos - não ignorando que a unificação  alemã também se faz à custa de minorias francesa e polaca - que refunda os Jogos Olímpicos e acredita que, com eles, é possível a paz e a harmonia, o convívio e a fraternidade, mais cultura e educação. Mas o que vem a viver é mais guerra e muita dor, crises sociais imensas e dramas coletivos cujo marco principal é a Primeira Grande Guerra. Diria que é mais uma guerra europeia mas a primeira que tem devastadores efeitos mundiais. Pelos milhões que vitimou e pelas consequências que desencadeou. Mas estas já Pierre de Coubertin não viveu. Sabendo nós que hoje em dia os Jogos Olímpicos são um dos símbolos mais evidentes da globalização. Mas, ainda, um dos marcos de uma especifica diplomacia e de um soft power que também ele, de forma bem diferente, marcou a primeira edição da nova era dos Jogos Olímpicos. Cujo marco fundacional decorreu na emblemática Sorbonne a 23 de Junho de 1886. E que terá uma nova concretização, a verificar-se, mas decerto  com sérias restrições, entre os próximos dias 23 de Julho e 8 de Agosto na linda e cosmopolita cidade de Tóquio! E com 47 atletas portuguesas e portugueses já qualificados ! Mas sei bem que o que vale… são as audiências. Dos assaltos aos diferentes capitólios!