Faça-nos sonhar novamente

OPINIÃO Faça-nos sonhar novamente

OPINIÃO31.10.202309:53

'Selvagem e sentimental', a opinião de Vasco Mendonça. Há muito tempo que o Benfica parece ser uma equipa que os adversários já toparam e conhecem a léguas.

Este fim de semana ganhou visibilidade nas redes sociais o vídeo de uma adepta do Benfica a reagir furiosamente ao empate concedido em casa contra o Casa Pia. A senhora, apenas mais uma Benfiquista anónima entre os quase cinquenta e oito mil que se deslocaram à Luz no sábado, é abordada por um repórter e depressa se lança num monólogo em que manifesta o seu descontentamento com tudo o que acabou de ver. Já todos vimos isto muitas vezes, mas, se forem como eu, desejam que a ingenuidade recaia num adepto do Sporting ou do FC Porto furioso com um resultado menos bom. Aquele momento é um dos lugares comuns do futebol, uma armadilha bastante previsível. 

O repórter está no meio dos adeptos, mas é como se fosse um tripé, ou um agente camuflado. Suspeito que naquele momento o adepto, inebriado com a má exibição da sua equipa, vê apenas um microfone, reconhece o logotipo de um canal de televisão, pensa para consigo mesmo que o país precisa de saber a verdade, toda a verdade e nada mais do que a verdade, pergunta a cerca de zero pessoas à sua volta se é mesmo boa ideia aproximar-se daquele microfone, e é então que assume, ali e naquele exato momento, que deve verbalizar tudo o que sente para o máximo número de pessoas. Neste caso, como quase sempre acontece, o resultado foi um comício ruidoso que evidenciou uma série de ideias pouco organizadas e alguns impropérios escusados, por entre vários sentimentos legítimos. Tudo somado, o órgão de comunicação social ganhou um conteúdo muito partilhável entre adeptos de todas as cores clubísticas, e especialmente popular entre os adeptos do Benfica. 

Horas depois de este vídeo surgir nas redes e inundar o meu WhatsApp, comentava com um amigo que este espectáculo não é bom para o Benfica e apenas expõe o clube, exacerba as suas fragilidades. A resposta não é fácil de desarmar. À falta de melhor oralidade, explicava este meu amigo, aquela adepta manifestou o que muitos de nós estão a sentir, aquela sensação de algo atravessado na garganta: as coisas não estão bem. E talvez aquela manifestação menos polida, de alguém que não preparou tudo o que ia dizer mas sabia exatamente o que estava a sentir, contenha uma verdade inegável. Há uma impaciência no ar, e a proverbial espera pelo próximo jogo que deveria esclarecer este equívoco e iluminar o caminho tem saído frustrada. 

A cada jogo menos bom, as certezas acumulam-se acerca do desempenho da equipa. Se há uma semana defendi que a necessária fase de adaptação tinha chegado ao fim, o que dizer então dos resultados e, ainda mais importante, das exibições que se sucederam? 

Há muito tempo que o Benfica parece ser uma equipa que os adversários já toparam e conhecem a léguas. Lamentavelmente, a única pessoa para quem isso não parece ser cristalino é Roger Schmidt, que continua a fazer pouco para introduzir novidade ou surpresa na abordagem aos jogos. Sejamos claros: não obstante as lesões, inadaptações e alguns já óbvios erros de casting, o plantel do Benfica continua a ter ingredientes mais do que suficientes para que se possa criar outro equilíbrio coletivo, nomeadamente através de um sistema de jogo que proteja mais a equipa nas transições defensivas. Mas não é só isso: o plantel do Benfica tem também opções suficientes para que se possa criar alguma surpresa nas dinâmicas ofensivas — de preferência surpresas que não envolvam o Aursnes numa nova posição em campo. Dessa surpresa penso que já estamos todos algo cansados. 

Não resolve tudo, mas é um começo. Quando tanta coisa parece falhar nesta equipa, as palavras ajudam. Permitem compreender o que alguém pensa, porque é que fez o que fez, o que se está a passar, para onde quer ir, e se a vontade continua lá. Se a isso juntarmos o contexto — no caso, uma capacidade previamente demonstrada para comunicar com os adeptos — é fácil compreender porque é que hoje as palavras de Roger Schmidt são mais sinónimo de preocupação do que de inspiração. Admito que parte desta leitura seja intuição minha, mas não vejo em Roger Schmidt um treinador com a fome da época passada, e também não vejo os jogadores com esse apetite. Partilho um exemplo que me parece paradigmático. Sempre que assisto a uma fase de maior permissividade ou entorpecimento da equipa, lembro-me do sexto golo em Israel na época passada. Foi um dos melhores momentos do Benfica nos últimos anos, e um dos raros momentos de um jogo do Benfica em que me lembro de observar uma equipa que parecia querer mais o golo seguinte do que os próprios adeptos. Foi uma sensação estranha e entusiasmante. Queremos sempre que os que vão a jogo sofram como nós, mas é difícil ver isso refletido em cada ação da equipa.  Aquela equipa sabia que tinha o jogo mais do que ganho e nem por isso deixou de acelerar, como se todos estivessem sob o efeito do mesmo princípio ativo e inebriante. Sei que muita coisa mudou desde então, mas apetece-me perguntar: onde anda esse sentimento hoje? E até que ponto somos capazes de voltar a esse lugar mental, físico e tático em que muitos destes jogadores já estiveram? 

Compreendo que Roger Schmidt seja alguém que prefere basear-se na realidade e nos factos, comunicando apenas aquilo que vê, por muito fria que seja a leitura (ou deselegante para alguns jogadores, já agora). Eu percebo e não peço necessariamente a Schmidt que me tente enganar quando vai à sala de imprensa. Ele é o que é. E talvez o tempo da conversa já tenha terminado. Não tendo nada de particularmente inspirador para dizer nesses momentos, então é absolutamente fundamental, e cada vez mais urgente, que o futebol da equipa volte a falar por ele e nos faça sonhar novamente. 

Chegou a hora de Roger Schmidt mostrar que a nossa história em comum ainda vai a tempo de um final feliz.