Euro-1980 jogou-se na Falagueira...
(Foto Imago)

OPINIÃO Euro-1980 jogou-se na Falagueira...

OPINIÃO27.06.202413:11

O Toni era uma nulidade no futebol, mas ficou com a Paula, a miúda mais gira da Falagueira; Já eu fui para Paulo Futre o que João Batista foi para Jesus Cristo... (*A crónica das quintas-feiras do Livro do Desassossego de Jorge Pessoa e Silva)

Bem sei que a história nos diz que a primeira participação de Portugal num Europeu aconteceu em 1984, em França. Mas eu juro, bisjuro e trejuro que foi em 1980, no bairro da Falagueira, Amadora. Juro, bisjuro e trejuro porque tinha quase 10 anos e lembro- me de ter sido convocado. Uma geração ímpar de jogadores, com destaque para o Zé Gordo na baliza, o Fininho no meio campo ou o Caricas na posição de à mama, posição mais tarde batizada de ponta de lança porque a Lei do Fora de Jogo era a única que uma criança nunca entendia e, por isso, a riscava. E eu? Digamos que fui para Paulo Futre o mesmo que João Batista para Jesus Cristo: o precursor… 

Essa seleção de Portugal tinha, no entanto, um ponto fraco: o Toni. A única qualidade que o habilitava à titularidade era ser… o dono da bola. O que lhe sobrava em entusiasmo faltava-lhe em competências básicas. A baliza era um lugar estranho e tentámos convencê-lo a experimentar o râguebi, tantos os pontos que deu ao País de Gales. Até os pássaros, à hora dos jogos, decretavam a Falagueira como zona de exclusão aérea. Curiosamente, foi ele quem ficou com a Paula, a miúda mais gira da Falagueira, com alma de Madre Teresa que ficou com o Toni por se ter comovido com a sua perfeita nulidade futebolística. E vejam como são as coisas: o Toni e a Paula casaram, emigraram para França e têm um filho a marcar golos na terceira divisão gaulesa.

No Europeu de 1980 não foi preciso sorteio. Vinham miúdos de outros bairros e logo ali distribuíamos nacionalidades sem necessidade de passaporte, desde que a Falagueira fosse Portugal. Os jogos começavam de manhã e acabavam com o cair da noite. Havia apenas um intervalo, os 15 minutos da praxe, a que também chamávamos de… almoço. O apito final era dado pelo grito dos pais a chamar-nos para casa. «Só falta um golo», respondíamos, comprando tempo. Deixou de resultar porque faltava sempre mais um golo…

Esse era um tempo em que bastava tomar banho ao final do dia para perder peso. Tempo em que os jogos eram também aulas práticas. Quando a baliza se delimita por duas pedras, muitos golos atribuem- se por complicados exercícios trigonométricos… Na ausência de VAR, desenvolvíamos também a diplomacia e a capacidade de persuasão. É verdade que o dono da bola e o mais forte ti-nham mais peso na decisão, mas havia espaço para a arte de negociar, da bola que entrou ou não; ao penálti que deve ou não ser marcado... A única vez que tentámos usar um árbitro foi pior a gritaria do que o erro. Desistimos.

Mas as melhores aulas práticas eram as da física. Cair num piso de asfalto doía a dobrar: quando caíamos e quando chegávamos a casa com a roupa rasgada e feridas para desinfetar. Preferia o álcool em carne viva aos sermões cantados da minha mãe. Johan Cruyff defendia que o futebol de rua era a melhor escola. Quando cair no asfalto não é opção, a criança desenvolve competências técnicas, em especial se for mais baixa, mais leve ou mais frágil que as restantes. Tem de ser mais rápida, mais ágil e mais inteligente. A rua ensinava o que não se aprende nas escolinhas de futebol. A rua como espaço de liberdade, de génio, de puro prazer.

Portugal venceu o Europeu de 1980. Uma injustiça não termos sido recebidos em Belém por Ramalho Eanes. As únicas condecorações que recebemos foram umas medalhas a que chamávamos nódoas negras. Cada um foi para seu lado e eu transferi-me para a equipa do Cacém.

Na passada segunda-feira estava de folga e regressei à Falagueira. O nosso estádio é agora um parque de estacionamento a céu aberto. Já não se organizam Europeus por aqui… 

PS — De regresso a casa, pego no Nunca Desistas dos Teus Sonhos, de Augusto Cury:

«Um dia uma criança chegou diante de um pensador e perguntou-lhe: que tamanho tem o universo? Acariciando a cabeça da criança, ele olhou para o infinito e respondeu: o universo tem o tamanho do teu mundo. Perturbada, ela novamente indagou: e que tamanho tem o meu mundo? O pensador respondeu: tem o tamanho dos teus sonhos... »