Árbitros sofrem cada vez mais contestação à medida que se aproxima o fim dos campeonatos
Árbitros sofrem cada vez mais contestação à medida que se aproxima o fim dos campeonatos (Foto: Imago)

Este não é um artigo sobre arbitragem

'Desportiva_MENTE' é o espaço de opinião quinzenal de Liliana Pitacho, psicóloga e docente no Instituto Politécnico de Setúbal

Não, este não é mais um artigo a discutir se foi ou não penálti, se alguém está a ser beneficiado ou prejudicado com possíveis falhas na arbitragem. Também não é um artigo que se refira ou dirija a qualquer clube de forma específica e particular (até porque neste caso é bem mais o que une do que os separa). Mas sim um artigo que pretende analisar a origem de um fenómeno repetitivo, principalmente nas fases derradeiras do campeonato português (não apenas no futebol), que diz respeito ao aparecimento de elevadas contestações e críticas inflamadas à arbitragem. Clubes, dirigentes e, por vezes, até jogadores unem-se num coro de protesto que ganha eco mediático sempre que a tabela se aperta e o desfecho do título se torna imprevisível. 

Curiosamente – ou talvez não – estas manifestações de descontentamento tendem a surgir sobretudo quando as equipas perdem pontos em jogos considerados decisivos. A questão que se impõe é: porquê agora? E porquê quase sempre? 

Procurou-se a explicação na ciência psicológica e encontram-se respostas pertinentes na aplicação de duas teorias clássicas. Em primeiro lugar, a Teoria da Atribuição, de acordo com a mesma os seres humanos têm uma necessidade natural de encontrar causas para os acontecimentos e, sobretudo para os acontecimentos negativos, é mais confortável enquanto seres humanos atribuirmos a responsabilidade a algo externo. Quando uma equipa perde pontos num jogo crucial, é psicologicamente mais confortável para os dirigentes e adeptos atribuir a responsabilidade a fatores externos, como o árbitro, do que aceitar falhas internas. Esta externalização da culpa protege a autoestima do grupo e mantém a coesão emocional. Por outro lado, de acordo com a Teoria da Dissonância Cognitiva, quando as nossas ações ou resultados entram em conflito com as nossas crenças, sentimos desconforto – a que chamamos dissonância. Uma equipa que acredita ser claramente superior e merecer vencer, mas que tropeça num empate ou derrota, procura rapidamente uma explicação que alinhe os factos (derrota/empate) com as crenças (somos superiores/devíamos ter ganho). A arbitragem surge como o bode expiatório ideal para restabelecer o equilíbrio interno. Ora, isto não é mais nem menos do que sermos humanos.  

Contudo, a análise não se esgota naquilo a que poderíamos chamar uma reação emocional normalizada, não sejamos utópicos, existe, também, efeito estratégico por detrás destas reações. Esta é uma excelente forma de unir a equipa e os adeptos em torno de um objetivo. De acordo com a Teoria da Identidade Social, ao apontar um inimigo comum – neste caso, a arbitragem – dirigentes conseguem reforçar a identidade do grupo, aumentar a ligação entre adeptos e equipa, e até criar um sentimento de "nós contra eles" que pode galvanizar o balneário e o público nas fases finais da época. 

Indo ainda mais longe nesta análise há um segundo efeito relevante, a pressão futura sobre os árbitros. Ao colocar o tema da arbitragem no centro do debate público aumenta também a pressão sobre as equipas de arbitragem que, consciente ou inconscientemente, pode influenciar decisões futuras. É uma espécie de psicologia preventiva, um verdadeiro jogo fora das quatro linhas. 

As críticas à arbitragem são mais do que simples desabafos. São reações humanas, e isso é inegável, mas para além de ferramentas emocionais utilizadas para lidar com a frustração do resultado, são também ferramentas estratégicas. Infelizmente, isto pode ativar o sentido de guerrilha junto dos adeptos o que pode despoletar comportamentos mais violentos por parte dos mesmos. E, assim, a par da pressão negativa que isto colocam nas equipas de arbitragem (que, sim, também são seres humanos e também têm emoções a gerir e nem sempre atuam nos contextos mais favoráveis para o fazer), este discurso mais exaltado pode ter como consequência negativa na inflamação dos ânimos junto dos adeptos aumentando a tensão social nas próximas jornadas.  

Em suma, toda esta contestação não poderia ser mais natural e derivada da nossa essência humana. No entanto, embora compreensível, esta contestação veemente da arbitragem pode ter efeitos negativos para o desporto. Alimenta tensões desnecessárias, coloca em causa a serenidade das equipas de arbitragem e pode até contribuir para um ambiente de hostilidade e violência fora das quatro linhas. Ainda assim, é também inegável que é precisamente essa carga emocional, essa intensidade quase visceral que faz do desporto – e do futebol em particular – algo tão fascinante.