Entre-vista à inspiração de um ‘cromo-joker’ (Parte I)
- Como vai?
- Vou a pé, claro. De que outra forma deveria ir? Aliás, é exactamente assim que amanhã gostaria de atingir o limite do meu infinito: de pé! Mais fique a saber que em 1974 foi descoberto na Etiópia um esqueleto fossilizado correspondente à ossada de uma mulher, hoje conhecida por Lucy, e que, apesar dos seus 3,2 milhões de anos, tinha a coluna direita. Ou seja, Lucy já era capaz de andar erecta. Coisa que ainda hoje está longe de ser universal. Para dizer tudo: há um antes e há um depois na História da Humanidade. Daí que a primeira fronteira da odisseia humana resida no exacto momento em que os nossos ancestrais começaram a caminhar.
- Desculpe, mas não me referia a nada disso. Quis tão somente observar um código de urbanidade. Referia-me ao seu estado. Como está, como tem passado?
- O meu estado, ao invés de muitos outros, jamais poderia ser o de vaporoso ou liquefeito. Logo, é sólido, por definição e natureza. Quanto ao mais, estou como sou e não mudo donde estou. O meu estado é a minha condição.
- Pronto, está bem. Comecemos então a entrevista. Mas antes de tudo o mais há uma questão prévia: porque é que se chama assim?
- Não me chamo A-sim. O meu nome próprio é A-não.
- Que lugar ocupa a simpatia na sua maneira de ser?
- Receio não ter percebido bem a questão, pois que, como qualquer outro humano, tenho um sistema nervoso autónomo que se divide em sistema nervoso simpático e sistema nervoso parassimpático. Como estes se contrariam mutuamente, parece correcto presumir que o parassimpático restaura os níveis de equilíbrio afectados pelo simpático.?Este está vocacionado para preparar o corpo numa emergência e para responder a um estímulo do ambiente sempre que o organismo seja ameaçado, para o efeito excitando e activando os órgãos necessários às respostas. Quanto ao parassimpático pode dizer-se que visa reorganizar as actividades desencadeadas pelo simpático. Por exemplo: se o sistema simpático faz com que o ritmo cardíaco acelere, a função do sistema parassimpático é normalizar esse ritmo.
- Porque é que há números-primos mas não números-irmãos?
- A verdade desvela-se com nitidez: entre um qualquer número e outro qualquer a distância é sempre e invariavelmente demasiada para poder em si compreender tal proximidade.
- Prefere um dó bemol ou um lá sustenido?
- Cada ovelha com sua parelha.
- Quais são as verdadeiras finalidades do mau tempo?
- A pergunta deveria ser feita no singular, porque só há uma razão. E essa é, evidentemente, a de gerar o bom tempo.
- Prefere os raios, os coriscos ou os trovões?
- Ora bem, escolho os trovões, como espero que seja óbvio. Em todo o caso, e precisamente porque o é, passo a explicar de modo sumário. A ciência já não ignora que a electrificação das nuvens ocorre devido às colisões das partículas de gelo acumuladas no seu interior. Isto não exclui, claro, a possibilidade dos efeitos resultantes da diferença de condutividade eléctrica do gelo se deverem a distintos níveis de temperatura no interior da nuvem. Por outro lado, factores climáticos e físicos diversos, como os ventos, a temperatura e a força da gravidade, fazem com que cargas do mesmo sinal se concentrem em regiões específicas da nuvem. Já os trovões são gritos de paixão acumulada, como se fossem ondas sonoras geradas pelo movimento de cargas elétricas na atmosfera. Mas atenção: devido ao aumento da temperatura do ar nas áreas da nuvem por onde o raio passa, os trovões podem tornar-se perigosos, especialmente nos locais próximos da sua ocorrência. Como saberá, o cálculo da duração dos trovões baseia-se na diferença entre as distâncias do ponto mais próximo e do ponto mais afastado do canal do relâmpago, prolongando-se entre os 5 e 20 segundos, em média. A expansão do ar aquecido gera dois tipos de ondas: i) um primeiro caracterizado como violento choque supersónico, com uma velocidade várias vezes superior à do som, enquanto nas proximidades do local de queda o som é inaudível para o ouvido humano; ii) já o segundo é uma onda sonora de grande intensidade e que é audível a distâncias maiores. Os meios de propagação dos trovões são, portanto, o solo e o ar. A onda sonora do trovão possui uma frequência, medida em Hertz, que varia de acordo com o meio, mas o relâmpago sucede sempre antes do trovão porque a luz é mais rápida do que o som no ar. Fui claro?
- Cristalino. Outra coisa - quem está mais próximo da Verdade: a física quântica ou a medicina molecular?
- Nem uma, nem outra. As disciplinas que mais de perto logram divisar o rosto da Verdade são a música e a poesia.
- Qual a rota mais segura para Walhala?
- Na minha opinião, sempre assertiva, como é norma e normal, o melhor caminho, sem dúvida alguma, é aquele que começa pelo ângulo maior do triângulo isósceles e encontra o seu terminus no ponto exacto do destino desejado. Nestes termos, como qualquer rota depende do ponto de partida, já para Walhala em nada interessa saber de onde se sai, pois que só uma única coisa importa: chegar.
- Pode uma só sílaba ser esdrúxula?
- Sei lá eu! E porque raio haveria de conhecer tal coisa mais obstrusa? A tal respeito só sei que o que se diz na minha terra: «à galinha que canta como galo corta-lhe o gargalo!»
- Qual é mesmo o sexo dos anjos?
- Ora essa! Cada um tem o seu. De que outra forma poderia ser?
- Para quê e porque é que se inventou o sofrimento?
- Ainda bem que me faz essa pergunta. Não faço nem sequer a mais pálida ideia.
- Acredita que as terças-feiras são melhores do que as quintas?
- Isso não é assim tão simples. Tudo depende de saber se estamos no hemisfério norte ou no sul e se é um dia par ou ímpar.
- Quantos lados tem uma bola?
- Depende da bola, claro. Mas também do que se queira contar. Todas as bolas maciças possuem um único lado - o exterior. Já as ocas gozam de dois lados: o de dentro e o de fora. Mas se estivermos a falar realmente de uma clássica e pura bola de futebol, em formato de poliedro, então, apesar de a contagem ser um pouco mais complexa, o apuramento do respectivo resultado não concede margem para qualquer dúvida: essa bola tem 32 faces, sob a forma de 12 pentágonos e 20 hexágonos, 90 arestas e 60 vértices.