OPINIÃO Eleição histórica
'Selvagem e sentimental', por Vasco Mendonça
Não imagino Jorge Nuno Pinto da Costa como um apreciador de histórias de super-heróis, mas a frase que, quanto a mim, melhor define a sua extraordinária queda a 27 de abril, acontece em The Dark Knight, filme de 2008 realizado por Christopher Nolan que perdura como um dos melhores do género. Em português: Ou morres como um herói ou vives tempo suficiente para te tornares o vilão. A frase é usada no filme em referência a Júlio César, que viveu demasiado tempo agarrado ao poder e morreu nesse mesmo lugar. A moral da história é que a concentração de poder corrompe. E foi mesmo muito poder, e muito tempo. Pinto da Costa tornou-se herói para os portistas há 40 anos, quando praticamente inventou um clube e o tornou vencedor, não olhando a meios para atingir esse fim. Afirmo que PdC inventou um clube porque, sejamos realistas, pouco se sabe acerca do FC Porto antes de Pinto da Costa.
De resto, poderia dizer muita coisa acerca do expediente a que o ex-presidente do FCP recorreu, mas fico-me por esta: ninguém lhe poderá retirar o estatuto de maior manobrador e influenciador do futebol português nos últimos 40 anos. Em certa medida, Pinto da Costa não se limitou a inventar um clube à medida da sua ambição. Contaminou todo o futebol português com esse espírito. Podia optar pela cortesia para com o presidente cessante e dizer que fez tudo isso para o bem e para o mal, mas estaria a mentir. Fê-lo, no essencial, na defesa pouco escrupulosa dos interesses do seu clube. Curiosamente, ao longo de 40 anos, não vi ninguém queixar-se. Reparem, nada tenho contra a vontade esmagadora de mudança manifestada pelos adeptos portistas. Mas tenho algo contra esta ideia de que a ideologia é uma coisa férrea quando estamos sentados à espera de ver uma bola entrar na baliza.
É por isso que ver tanta gente a falar dos resultados de sábado como uma espécie de dia inicial inteiro e limpo, depois de terem assinado por baixo de 40 anos bastante sujos, acaba por ter a sua piada. No final de contas, a suposta ditadura que caiu no sábado foi do agrado de muita gente durante muito tempo. Aliás, houve até quem, para gáudio de milhares de portistas, nos momentos de conquistas desportivas dos últimos anos, tenha falado na obra de Pinto da Costa como o 25 de Abril do futebol português. Torna-se confuso. Assim, admitamos que a dita ditadura não é mais do que uma construção social que só ganhou alicerces desta vez porque o FC Porto começou a perder mais vezes do que os adeptos gostariam. Até prova em contrário, aliás, esta parece mesmo ser a única forma de alguém chegar à presidência de um clube de futebol de maior dimensão em Portugal. É um facto que esse contexto foi agravado pelos acontecimentos de uma Assembleia Geral em que Pinto da Costa escolheu cair com os seus cúmplices, mas continuarei a teimar. Se o FC Porto estivesse na frente do campeonato e deslumbrasse os adeptos com a qualidade e eficácia do seu futebol, até esses episódios teriam sido relativizados. Basta olhar para os 40 anos que vieram antes.
Aqui chegado, o novo presidente, André Villas-Boas, tem alguns desafios que vão para lá do desastre financeiro. Por um lado, ser bom a fazer campanhas não torna alguém bom presidente seja do que for. André Villas-Boas tem o clubismo apaixonado e uma vida profissional longa no futebol, mas não seria o primeiro com esse currículo a falhar. Por outro lado, a salvação do FC Porto a que AVB se propõe, eventualmente tornando o clube algo um pouco mais à sua imagem, pode até ter o melhor business plan e conter as palavras mais bonitas, mas o sucesso desse plano vai depender essencialmente de uma coisa: quantas vezes a bola entra na baliza do adversário. Agora é fácil. Há esperança, as flores voltam a crescer, a primavera chegou. Se os resultados não aparecerem à medida que o tempo for passando, Villas-Boas, a quem gabo genuinamente a coragem, será assombrado pelo seu antecessor e pelo clube que este inventou, um clube que deu aos adeptos aquilo que não conheciam até então: o gosto de uma vitória que não querem perder, custe o que custar, contra tudo e contra todos. Na dúvida, tendo a pensar que AVB corre sério risco de se tornar sub-produto da cultura formada nas últimas décadas, mais do que o representante de nova forma de estar.
Como outros dias históricos, este também suscitou muitas reflexões, paralelismos vários e algumas recordações, em particular no universo Benfiquista. Acho que vale a pena abordar algumas.
A transparência do ato eleitoral
Este é o maior elogio que posso fazer às eleições de sábado passado. Ao nível procedimental, o FC Porto soube tratar com seriedade e dignidade um ato eleitoral que se antevia de grande importância. Tendo estado ativamente envolvido numa ocasião de igual magnitude no Benfica, digo apenas que muita gente, incluindo pessoas que hoje permanecem no clube, deveria sentir-se envergonhada por ter fechado os olhos ao modo como decorreu a eleição de 2020, que opôs Luís Filipe Vieira a João Noronha Lopes. O que se viu foi um ato eleitoral cuja integridade foi repetidamente comprometida, até pouco sobrar para lá da desconfiança e da forma pouco honrada como os intervenientes se comportaram. Já lá vão quase quatro anos e, ainda hoje, ouço muita gente pouco dada a teorias de conspiração questionar a veracidade do resultado eleitoral. Já não é possível recuar no tempo e exigir um ato eleitoral íntegro, mas aquilo que aconteceu em 2020 não vai voltar a repetir-se. Os benfiquistas não deixarão.
O problema para o Benfica
Vi algumas pessoas assustadas com a ascensão de um novo FC Porto, como se viesse aí uma espécie de gigante adormecido. Não deixando de reconhecer a valia do adversário e algumas qualidades discerníveis de André Villas-Boas, permitam-me corrigir. O único gigante que tem parecido adormecido nas mais diversas matérias é mesmo o Benfica. Nenhuma instituição em Portugal se compara a este gigante, e parece cada vez mais claro que essa grande está a ser desperdiçada no plano desportivo, com consequências potencialmente sérias no plano financeiro, que por sua vez entrarão pelo plano desportivo adentro. É um loop que os adeptos conhecem bem, infelizmente. Em suma, falar do novo presidente do FC Porto como um problema para o Benfica ignora o essencial: os problemas do Benfica não têm começado na casa dos outros. Têm acontecido na sua própria casa e estão cada vez mais à vista de todos.
A competência dos outros
Por enquanto estamos num plano teórico, mas o Linkedin dá boas pistas. É bastante seguro afirmar que a equipa apresentada por André Villas-Boas para a direção e para a SAD reúne uma experiência acumulada rara num clube de futebol em Portugal. Só o futuro dirá se estes profissionais, alguns dos melhores a trabalhar nas respetivas áreas em Portugal, terão capacidade para lidar com um Titanic financeiro, mas dá que pensar quando vemos os currículos de quem se apresenta ao serviço no FC Porto, numa situação tão delicada como a atual, e os comparamos com os órgãos sociais e a administração da SAD do Benfica. Será incapacidade de recrutar os melhores? Neste caso, já abandonámos o plano teórico. Podiam até ter os melhores currículos do mercado, mas a qualidade prática demonstrada ao longo deste mandato por quem está no clube é curta. Falta governança, falta comunicação, falta inovação, falta rasgo, falta modernização na relação com os sócios, falta respeito por iniciativas importantes para o futuro do clube (revisão dos estatutos, por ex.) e falta renovação.
Se o Benfica não tivesse ganho a liga da época passada, o maior feito deste mandato teria sido a colocação de LEDs no estádio. Tudo somado, é difícil lembrar-me de muita coisa que tenha confirmado a ambição transformadora que esta direção anunciou à chegada.
A nova geração
Nos últimos dias, ganhou força uma espécie de kumbaya com os meninos dirigentes à volta da fogueira, prontos para regenerar o futebol português. Tenho as maiores dúvidas em relação a essa possibilidade, mas cá estarei para reconhecer quando isso acontecer. Até ver, não passa de uma leitura sociológica baseada mais na faixa etária que três dirigentes desportivos partilham, do que em qualquer mudança que os três tenham protagonizado efetivamente. De resto, não querendo ser um daqueles chatos que faz a verificação dos factos, tenho dificuldade em ver o atual presidente do Benfica como o representante de uma nova geração. Rui Costa assume cargos de primeira linha no Benfica desde 2008, sempre em reporte direto ou articulação com Luís Filipe Vieira. Antes de ser presidente, foi administrador da SAD. Mesmo que assim não fosse, a nova geração poderia ser medida na composição dos órgãos do clube. Mas é aí que a coisa piora: 66,6% dos membros da Direção e do Conselho Fiscal são as mesmas que estavam lá quando Vieira era presidente. Não sei se chamaria a isto uma nova geração.
A mudança necessária
Já aqui disse que vejo com alguma ironia este frémito pela mudança no FCP, um clube em que ao longo de 40 anos (quarenta) se fechou os olhos a tudo. Ainda assim, a máxima mantém-se. Mais vale tarde do que nunca, e aplaudo os adeptos do FC Porto por terem feito esta mudança acontecer.
Quanto ao meu clube: a mudança já era necessária no Benfica em 2020. Era necessária, aliás, muito antes disso, mas nunca chegou. Em 2024, os sócios do FC Porto, tardiamente, escolheram outro presidente. O facto é que, no Benfica, isso só aconteceu após a intervenção do Ministério Público. Essas novas circunstâncias deram a uma nova direção absoluta legitimidade, conquistada por via eleitoral, para que uma nova era se iniciasse pautada pela ação em nome do melhor interesse do clube. Desde então, pouca coisa mudou. As pessoas são essencialmente as mesmas, os problemas não são muito diferentes, e o Benfica continua longe de cumprir o seu desígnio: vencer, vencer, vencer, vencer muitas vezes. A hegemonia interna a que o clube pode e deve aspirar tornou-se uma visão longínqua, muitas vezes alvo de críticas por parte de adeptos que criticam a exigência. Ao contrário do que parece, o diagnóstico que faço nesta página não resulta das eleições de outro clube: resulta de acordar e adormecer a pensar nisto, como todos os Benfiquistas que conheço. E é por isso que lanço aqui um repto, a todos, para que pensem cada vez mais no clube que querem, e respondam à pergunta: aquilo que temos hoje é suficiente?
Bem sei. Manda a cartilha que qualquer reflexão publicada deste tipo seja imediatamente atacada como um assalto ao poder ou simplesmente como inoportuna. É uma coisa dos diabos. Nunca nada é oportuno, como se vê pelos sucessivos adiamentos da revisão estatutária. Fica a sensação de que nada é oportuno para quem convive mal com a crítica. Mas uma coisa é certa: haverá uma eleição em 2025 e é importante que o clube saia muito mais forte desse ato eleitoral.