Cristiano Ronaldo: gratidão não rima com razão
Cristiano Ronaldo esteve num plano discreto no Europeu da Alemanha (Foto Miguel Nunes)

Cristiano Ronaldo: gratidão não rima com razão

OPINIÃO23.08.202408:30

Livre e direto é um espaço de análise semanal de Rui Almeida

Ainda me está fresca a memória, apesar dos 21 anos passados. Um estádio disruptivo pela arquitetura de Tomás Taveira, a herança pesada de um José Alvalade mítico, por grandes nomes e importantes conquistas.

Dulce Pontes a empolgar com o Amor a Portugal na música épica de Morricone e, no relvado, um miúdo lançado por Fernando Santos frente ao Manchester United, ilustre convidado para a festa sportinguista de inauguração do seu novo recinto.

Começa o encanto absoluto de Cristiano Ronaldo, ao ponto de Ryan Giggs e companheiros do United convencerem Sir Alex Ferguson a avançar, de imediato, para a contratação do jovem fenómeno português.

Velocidade, capacidade de drible no duelo direto, remate possante e colocado, variação do tipo de jogo. Tudo Cristiano oferecia, tudo Cristiano ofereceu durante muitos anos. Aliando as condições genéticas e de talento indispensáveis a uma capacidade de trabalho único, o madeirense rapidamente se tornou referência em Inglaterra e no “planeta Futebol”. O primeiro a chegar e o último a sair das sessões de treino, a obsessão pela perfeição (que, não existindo, é sempre o alvo dos predestinados), a capacidade de se integrar e de começar a liderar, aliada à propensão goleadora que dele fez recordista em várias ligas e em múltiplos desafios.

 

A história de sonho de Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro, menino nascido para a bola da rua em bairros condicionados do Funchal e transportado, quase num ápice, para o patamar mais alto da competição, do desafio, da maturação profissional num mundo global em que se torna ídolo, benchmarker, referência, influencer, motivação, figura quase estelar.

Martínez, Ronaldo e a Seleção

19 agosto 2024, 08:30

Martínez, Ronaldo e a Seleção

Depois da irrelevância demonstrada no Euro e do festival de egocentrismo dado na final da Supertaça saudita, este CR7 vai ser uma solução ou um problema para a Seleção?

Cristiano foi notável, do ponto de vista puramente desportivo, durante 15 anos. Os primeiros seis no Manchester United, depois no Real Madrid, para onde verdadeiramente protagonizou a primeira grande transferência global, recordista de valores à altura e projetada pelos merengues ao nível das suas ambições.

Nos últimos seis anos, a sua carreira tem decrescido em ternos de impacto. Desde logo porque o movimento para a Juventus talvez tenha sido o mais mal pensado da sua carreira, do ponto de vista estratégico: o futebol italiano não é o espanhol e muito menos o inglês, a “Juve” vinha de uma fase muito difícil nos capítulos desportivo e financeiro (vendo o português como uma inegável mais-valia, mas não lhe concedendo o espaço e o tempo de que, porventura, necessitaria), e a idade em crescendo obrigava Ronaldo a uma dupla perspetiva de leitura: por um lado, as condições físicas inatas (e, obviamente, muito potenciadas por uma capacidade de trabalho única e transversalmente reconhecida) obrigavam-no a um reposicionamento tático e a uma contenção na disponibilidade que não reconheceu; por outro, a destreza mental que sempre revelou na tal obsessão pelo treino implicava que percebesse a evolução do jogo, o sentido coletivo do mesmo e a sua integração nos novos patamares de competição, com jogadores jovens, profundamente disponíveis, dotados e agressivos para o futebol ao mais alto nível de rendimento.

E foi aí que algo mudou, que algo não funcionou no necessário aggiornamento do grande jogador português. Foi notória a componente mais individualista, que se revelou na Juventus, se maximizou na última e menos conseguida passagem por Old Trafford e se exponencia, agora, no Al Nassr, de uma liga saudita em que o dinheiro consegue apagar a ética de um país em que as liberdades ainda não são totais e em que um futebolista profissional com a dimensão universal e o impacto global de Cristiano Ronaldo poderia ter uma importante palavra a dizer, por exemplo, na defesa dos plenos direitos das mulheres, longe de estarem garantidos em Riade, e curiosamente num momento em que a FIFA e a UEFA se esforçam por dignificar a ajudar a comparar, em todos os aspetos do jogo e da sua organização, as vertentes masculina e feminina…

Cristiano, enquanto capitão da seleção nacional portuguesa, atirou por três vezes a braçadeira ao relvado, barafustou com companheiros pelo facto de a bola não lhe ter chegado redonda, revelou-se não disponível quando a competição parecia menos interessante (a fase de grupos da Liga das Nações, por exemplo). Marcou golos decisivos e falhou ocasiões determinantes (como no último Europeu). Beneficiou sempre de uma boa imprensa, que lhe reconhecia (e muito bem) todos os méritos mas que, muitas vezes, olvidava situações de menor acerto. 

E, no que diz respeito à sua presença na seleção, ela será tão importante como fator de empolgamento e motivação, quanto dispensável como titular indiscutível, fator que conduziu a um claro menor rendimento coletivo do combinado nacional no Mundial do Qatar e, sobretudo, no Europeu da Alemanha. A influência de um jogador (ainda que seja um mito, um recordista de muitos fatores e golos a nível mundial, o mais exemplar e incansável dos trabalhadores no jogo e no treino), pode ser fundamental no balneário, não tem de o ser no retângulo. Para mais, quando Portugal tem uma geração extraordinária de jogadores do mais alto nível (porventura, a melhor sempre…), que, em determinados momentos, parece ofuscada pela tentativa de individualização do brilho de quem já não precisa de tentar marcar todos os livres diretos para provar quem é e assinar o seu nome na história do futebol.

Caro Cristiano, foste, és e serás único. 

Que saibas sair na exata medida da grandeza da tua carreira.

Fica a gratidão, que agora tem mesmo de dar lugar à razão.