OPINIÃO Bruno Lage descobriu a 'pólvora' e João Pereira deu um 'murro na mesa'
Não, Di María não está acabado, frisa Bruno Lage; Não, eu não sou Amorim, grita João Pereira. E eu sou o Jorge Pessoa e Silva, esta é a minha crónica semanal do Livro do Desassossego
Confesso: até à chegada de Bruno Lage ao Benfica estava já a começar irritado com muito do que se ia comentando de Di Maria. Que já tinha 36 anos, que já não defende, que deixa a equipa mais exposta, que não deveria ter renovado até pelo salário que recebe, blá, blá, blá… Para mim era o equivalente a criticar-se Van Gogh por não ter andado a pintar prédios, passadeiras no asfalto e carregar com baldes de 50 litros de tinta… Os artistas são artistas. Ponto final.
Eu sei que o futebol mudou muito, que se tornou mais intenso, mais veloz e mais físico… E isso dá-me calafrios, porque – deve ser dos 54 anos já feitos – eu cresci a idolatrar os artistas, com Diego Armando Maradona à cabeça e Ronaldinho Gaúcho muito perto. Era só o que faltava querer que eles defendessem… Se eu já vivo desconsolado com o facto dos números 10 terem entrado em vias de extinção, se passamos a exigir aos artistas que sejam também máquinas, estamos a roubar-lhes a magia. Ou melhor, a roubar-nos a magia de quem gosta de ver um jogador pegar nos tubos, nos pneus, montar a bicicleta, fazer um cabrito e marcar um grande golo, como Di Maria fez ao Estrela da Amadora, na Taça.
Afinal, Bruno Lage vem provar que é possível preservar o artista em fato de gala sem o obrigar a usar fato-macaco… É só saber guardar as costas de Di Maria, pedir um pouco mais a Aursnes na cobertura para que, entre a magia de um e o esforço suplementar do outro, o saldo se traduza em grandes momentos de futebol.
Faço aqui um parêntesis para um pedido de desculpas a Aurnes… Nunca entendi bem terem-no posto num patamar tão elevado. Bom jogador? Sim, claro, mas o segundo melhor de todo o campeonato 2022/23? Sempre achei os elogios manifestamente exagerados. Mas com o tempo, e olhando cada vez mais para Aursnes, percebi que é mesmo um campeão. Terceira época no Benfica, terceira mudança no xadrez, sempre a sacrificar-se pela equipa e com uma disponibilidade daqui até… Oslo e voltar. Mas como não é o artista, daqui a uns anos será muito mais lembrado por todos os companheiros de armas que beneficiaram da sua disponibilidade do que pelos adeptos. Mas sempre foi assim, as cigarras, ao contrário da moral da fábula, sempre tiveram mais reconhecimento do que as formigas.
Di Maria parece rejuvenescido. É um artística notável. Nem sei se os próprios adeptos do Benfica, em especial os que chegaram a alinhar no discurso do é ‘bom, mas…’ têm a verdadeira noção do que significa Di María enquanto ícone do futebol mundial. Sejamos de que clube formos, só temos de lhe estar gratos. A ele a Bruno Lage por ter provado que sim, é possível uma estrela ser arte em estado puro quando todos trabalham como equipa para o mesmo.
O 'murro na mesa' de João Pereira
Não estava à espera, confesso, do tom da conferência de imprensa de imprensa de João Pereira, ontem, na antevisão ao jogo com o Moreirense. De longe, a melhor conferência do treinador leonino, a mais assertiva, a que, no fundo, se impunha. «Ruben Amorim já não volta, eu é que sou o treinador e confio no meu trabalho», atirou. Ao dizer o que, formalmente, é uma verdade de La Palisse, usou-a como chicote psicológico, como grito do Ipiranga e uma espécie de acordar de um clube, a começar pelos adeptos – também os jogadores? – em plena ressaca emocional provocada pela saída de Ruben Amorim.
João Pereira foi também contundente a traçar fronteiras, agastado com as comparações com Ruben Amorim. Recusa ser cópia, sabendo que a cópia é sempre pior do que original, e não abdica das suas convicções. Quanto mais depressa ele se demarcar de Ruben Amorim, mais tem a ganhar. Não depende só dele, até porque são inevitáveis as comparações, mas ele pode cortar muitos males pela raiz. Caso contrário, se correr bem é porque Amorim deixou a papinha pronta, se correr mal é porque conseguiu estragar o trabalho de Amorim. Se não se livrar desta lógica, fica sem nada para ganhar e com tudo para perder.
Se até ontem, João Pereira parecia encolhido, desconfortável, quase que a pedir desculpas, passe o exagero, por estar ali, ontem, pela primeira vez, pelo discurso e tom de voz, deu um pulo enorme em termos de comunicação. Quer ser julgado por aquilo que for capaz de mostrar, ou não, nunca pelas comparações, injustas, com Amorim. E mesmo em todos os assuntos, explicou melhor, foi mais natural.
É caso para dizer: bem vindo, João Pereira.