OPINIÃO Aquela Última Ceia em Paris2024: eu, católico, não me senti ofendido
Haverá coerência em permitir-se a recreação artística da Última Ceia e ao mesmo tempo proibir um atleta de competir no surf com uma prancha que tinha o Cristo Redentor estampado?
Já passou quase uma semana da cerimónia de Abertura dos Jogos Olímpicos e o debate mantém-se em relação à recreação de A Última Ceia por drag queens.Da Igreja a muitos políticos, passando pelo debate nas redes sociais, choveram críticas e acusações deataque gratuito aos valores do cristianismo e aos pilares da cultura europeia, judaico-cristã. Posso garantir que eu, católico, antigo seminarista salesiano, e acérrimo defensor da Igreja não me senti ofendido. E lembro que a tão propalada cultura europeia tem também por pilar a liberdade de expressão.
Para mim, aquela recreação é um ato artístico e situa-se no estrito domínio do bom ou do mau gosto, e esse é por natureza subjetivo. Eu, acima de tudo, não entendi o objetivo. E o erro não é meu, a avaliar pela quantidade de explicações que o coreografo da cena e a organização tiveram de dar a explicar o que pretendiam e que tudo era bem intencionado. E se a crítica é apenas pelo facto de serem drag queens a recrear essa Última Ceia, isso diz mais de quem se sentiu ofendido do que das drag queens.
A liberdade de expressão não é uma causa à la carte que defendemos quando concordamos e pomos de lado quando discordamos ou lidamos com posições que contrariam as nossas crenças. Por outro lado, a minha Fé não precisa de ser artificialmente respeitada, não está dependente da aprovação dos outros e resiste bem a quem defende posições opostas.
Quando, em 1992, o então secretário de Estado da Cultura, Sousa Lara, censurou O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago, retirando a candidatura ao Prémio Europeu da Literatura por não respeitar a moral cristã, fiquei com os cabelos em pé. Tudo porque naquela obra de ficcionada, repito, ficcionada, Maria Madalena e Jesus Cristo vivem maritalmente. Eu não dei o poder a ninguém para decidir em meu nome o que deve ou não ser dito, deve ou não ser lido, respeita ou não a moral cristã que por acaso até é a minha. Para mais, o livro e é uma obra prima de José Saramago, que até tratou Jesus Cristo, volto a insistir, nesta obra ficcionada, com enorme respeito.
A liberdade de expressão deve ser intocável. Mesmo para o disparate. Mesmo para ouvir coisas que não gosto de ouvir. Se alguém se põe a decidir em nome de todos o que deve ou não ser dito, o que é ou não ofensivo em termos de expressão artística, mais tarde ou mais cedo alguém vai querer censurar o que penso, digo ou expresso. Por isso, a forma mais eficaz na defesa da liberdade de defender aquilo em que acredito é eu defender o direito de expressão a quem não acredita. Como disse Voltaire, podia opor-se firmemente à opinião de alguém, mas daria a vida se preciso fosse para que o mesmo a pudesse expressar.
Para ser sincero, o que me incomodou mesmo nestes Jogos Olímpicos foi a organização ter proibido o surfista brasileiro Chumbinho de participar com uma prancha que tinha um desenho estampado do Cristo Redentor. Oficialmente por violação do artigo 50, que se estipula que «não é permitido nenhum tipo de manifestação ou propaganda política, religiosa ou racial».
Em primeiro lugar, o Cristo Redentor é uma marca do Brasil, Património da Humanidade, eleito como umas das Sete Maravilhas da Humanidade do Mundo Moderno. Em segundo, não é propaganda, Chumbinho não anda a surfar e a pregar o Evangelho, o Padre António Vieira é que fez um sermão aos peixes… Pensando bem, e se andasse a pregar, qual o mal? Em terceiro, o respeito pela liberdade começa pelo respeito pelas crenças e vivência da fé das pessoas. Qualquer dia estão a proibir os atletas de fazer o sinal da cruz antes de cada prova, de festejar apontado as mãos ao céu, de agradecer a Deus nas entrevistas ou de publicarem nas redes sociais fotografias dentro de uma igreja.
A liberdade de expressão tem de ser sagrada para todos. Também para o Chumbinho e para mim, que sou católico. Avesso à ideologia do politicamente correto que, fazendo um esforço por não desagradar a ninguém, acaba por, indiretamente, ser mais compreensivo com posições defendidas por grupos menores de pessoas e restringir posições de uma maioria. Repararam que eu não uso a palavra minorias. Estigmatiza. Odeio a palavra minorias. Somos todos homens e mulheres, as nossas posições não se validam por números do que defendem o mesmo que nós. A tolerância é inegociável. Para todos. Todos, todos, todos.