João Pereira parece destinado a ser o sucessor e terá de receber uma herança que não lhe deixa qualquer margem de erro. Manter tudo como está é realmente exequível no futebol?
Tive inúmeras conversas com adeptos do Sporting, que, sem quererem ouvir qualquer tipo de contraditório, deixaram sair muita da dor que lhes vai na alma por Amorim ter decidido sair a meio da época e, eventualmente, colocar em causa um bicampeonato histórico aos leões. Se quando se deu aquela célebre viagem em abril, provavelmente muitos disseram «está tudo bem, já nos deu muito», o sentimento, meio ano depois, evoluiu com a expetativa da extensão da era de sucesso em Alvalade.
Parece-me consensual que o desânimo causa uma enorme mancha na imagem conquistada pelo treinador nos últimos anos, por esses adeptos serem de faixas etárias, classes sociais e até cidades e origens bem diferentes. Por aquilo que representa para os leões, a mágoa é tanta que leva a que muitos expressem verbalmente e sem pestanejar a vontade de já não mais verem Amorim à frente, desejando que estivesse já em Old Trafford e não se tivesse sequer sentado no banco diante do Nacional. Confesso que esperava o desagrado, ainda que não a este nível e com esta unanimidade, mas quanto mais alto se sobe na estima que têm por nós maior é a queda quando a perdemos.
Há um equilíbrio difícil por encontrar em Alvalade sobre a sua saída, mas o que Rúben transportará do Sporting para a metade vermelha de Manchester poderá ser decisivo para ressuscitar o United
Não muda a opinião que tenho sobre Rúben Amorim e a aceitação deste novo destino nesta fase da temporada. É um emblema colossal, que pode só bater-nos à porta uma vez e cuja dimensão do desafio elevará o primeiro técnico bem-sucedido a dimensão estratosférica. É o tal fazer o que ainda não foi feito. Onde estavam antes décadas de dedicação à profissão poderiam passar a estar um par de anos e o risco de correr mal – ainda mais quando contrastado com o ‘e se corre bem?’ – é tão pequeno que vale muito a pena tentar. Se falhar, Rúben não terá sido pior do que o compatriota Mourinho, os neerlandeses Van Gaal e Ten Hag, um alemão a que a história do jogo deve muito, embora Cristiano Ronaldo não o conhecesse antes, chamado Rangnick, o baby face assassin Solskjaer e o escocês Moyes. Há ainda, evidentemente, a questão financeira, poder treinar os melhores na melhor liga e ter praticamente todos os holofotes do planeta sobre si. É certo que a pressão pode ser esmagadora, mas quem é que não a aceitaria num piscar de olhos? Um Manchester United não se recusa, ainda mais este, tão carente.
Adeptos sentem-se traídos
Estas reações permitiram-me, sim, perceber o quanto os sportinguistas baixaram a guarda depois de abraçarem nas profundezas de si próprios alguém que há uns anos lutava pelo maior rival, pelo inimigo, e isso os faça considerarem-se traídos e os encaminhe para sentimentos ainda mais obscuros. Como a paixão anda de mão dada com o ódio, sou capaz de o entender. Rúben Amorim era um dos seus, um dos maiores dos seus, diferente dos outros e nunca seria capaz de deixar Alvalade a meio de uma temporada. Mas foi.
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O pobre Rúben mal conseguiu camuflar que essa dor também é a sua. A decisão, essa, é racional e para tomá-la teve de colocar de lado todos os sentimentos que o pudessem impedir de avançar. Não sei se dirigidos a um clube que tornou seu ou às pessoas que aí estão, mas a verdade é que nas duas últimas conferências em que esteve, sobretudo na primeira, tudo em si era um turbilhão. Os gestos, as indecisões, as meias-palavras, até as contradições onde antes praticamente não se encontrava ponta por pegar só reforçam a sua humanidade. Um mestre do controlo perdeu o controlo do corpo, das palavras, talvez no momento em que não podia perder. Mesmo que, a meu ver, não tivesse qualquer escapatória na direção a tomar.
Manter a fórmula será suficiente?
É verdade que o clube ainda abana. Pode não se sentir, pode não gerar danos, mas a perda da sua maior figura a todos os níveis tem de mexer com os jogadores e, se algo menos bom acontecer, semear uma dúvida como uma erva daninha na cabeça de todos. E esse é o maior segredo de qualquer treinador: fazer com que quem realmente joga acredite em si e nas suas ideias.
A herança seria sempre pesada, mas ainda que a diferença para os perseguidores seja por estes recuperável, sair com a equipa estável e em primeiro é sempre segurança maior para quem chega. Que provavelmente se sentirá obrigado a manter a fórmula do sucesso – e que muitos criticaram na segunda e terceira temporadas por estar esgotada e não haver plano B – mesmo que não seja a sua e tentará que as dinâmicas criadas não sofram erosão por já não aí estar quem as pensou e lhes encontre variáveis. É aqui que a minha dúvida reside. Perder o coração e colocar aí outro que pode não estar preparado para bombear sangue para tamanha musculatura será sempre um risco e o corpo até pode acabar a rejeitar o transplante.
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Como é que Rúben fazia mesmo?
O nome de João Pereira não demorou muito a surgir depois das notícias sobre o raide do Manchester United por Amorim, o que até poderia indiciar que estaria destinado arrancar a próxima temporada se este decidisse sair apenas nessa altura. Um ex-jogador a quem a estrutura vê capacidade, alguns jogadores reconhecem de estar ao seu lado nos treinos, experiente como futebolista, mas com pouco traquejo, e apenas com jovens, na qualidade de técnico. A primeira reação geralmente reflete o que achamos e a minha, reconheço, foi: não será curto?
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Algumas vozes levantaram-se de imediato. É só preciso não estragar, repetiram-me ao ouvido. A declaração confunde-me, reconheço, porque no futebol tal vale muito pouco. É escolher o 11 lógico no esquema de sempre e dar uma palmadinha nas costas de cada um e dizer: «Vai e faz o que costumas fazer!» Será isso? E quando um deles se aproximar da linha e perguntar: «Mister, não está a resultar, o que faço?» Claro que poderemos sempre questioná-lo: «Como é que o Rúben fazia mesmo?», porém não será injusto até para João Pereira? Amorim demorou cinco anos a montar este Sporting e alguma coisa ficará. Concordo! Mas não esperem que tudo vá continuar como antes e que basta apenas não estragar.