«A mão de Deus negro»
«Não meti a bola com a mão. Meti-a com o corpo», disse, então, Vata a A BOLA
Quando o sorteio ditou o Marselha para adversário do Benfica nos quartos de final da Liga Europa, logo me ocorreu um jogo inesquecível para os benfiquistas, que faz parte da história do futebol, por causa do tal golo (feito com a mão do Vata) decisivo naquela meia-final da Taça dos Campeões Europeus.
Eu estava lá. Em reportagem. E ainda hoje estou para saber como aconteceu aquele golo. Só me lembro que a bola entrou na baliza dos franceses e estes, de braços no ar, indignados, barafustavam a protestarem com veemência.
Naquele tempo não havia VAR para esclarecer... O que ficou registado em A BOLA foi o esclarecimento do próprio Vata. «Não meti a bola com a mão. Meti-a com o corpo», afirmou. Enquanto o título da crónica do senhor Aurélio Márcio era: «O braço direito de Vata abre caminho à final de Viena.» E, numa alusão a situação idêntica, cometida por Diego Maradona, no jogo do Mundial-86, com a Inglaterra, a encimar a ficha do jogo, lá estava: «Mão de Deus negro leva Benfica à final.»
O Benfica-Marselha foi a 18 de abril de 1990. O Estádio da Luz estava a abarrotar para mais uma grande noite europeia. Eram 110 mil espectadores a empurrarem a equipa para mais uma final da maior competição da Europa. O Benfica tinha perdido (1-2) em França. Bastava-lhe, portanto, vencer por 1-0.
Mas o Marselha tinha equipa de luxo, na qual pontificavam jogadores internacionais como Jean-Pierre Papin, Didier Deschamps, Jean Tigana, Amoros, Francescoli, Sauzée, Castaneda, Chris Waddle e o ex-benfiquista Mozer, e segurou o resultado até perto do final…
Porém, aos 83 minutos surgiu o golo do Vata a incendiar o inferno da Luz. Que loucura! Que grande festa naquelas bancadas! Curiosamente com o dobro das pessoas que atualmente esgotam o novo Estádio da Luz. A euforia instalou-se nas hostes encarnadas. O Benfica, então orientado pelo sueco Sven-Goran Eriksson, alinhou com este onze: Silvino; José Carlos, Samuel, Aldair e Veloso (cap.); Vítor Paneira, Hernâni, Thern (Pacheco) e Valdo; Lima (Vata) e Magnusson.
No final, o meu conterrâneo (de Arganil) Gaspar Ramos, vice-presidente e chefe do departamento de futebol, estava feliz com a qualificação: «Temos uma equipa para a Europa. Em três anos chegámos a duas finais da Taça dos Campeões.» Muito bem. Só que a profecia de Béla Guttmann viria a funcionar mais uma vez. Porque o Milan venceu o Benfica (1-0, golo de Rijkaard), em Viena, na Áustria.
Como disse, eu estava lá. Integrado numa vasta equipa de profissionais do jornal A BOLA. Éramos oito jornalistas para fazer cobertura total dos acontecimentos: Aurélio Márcio (crónica do jogo), Alfredo Farinha (equipa do Benfica), Santos Neves (equipa do Marselha), Vítor Hugo (cabinas do Benfica), Vítor Cândido (cabinas do Marselha), o genial João Alves da Costa (reportagem junto dos franceses), António Simões (reportagem geral, incluindo bastidores e folclore) e Nuno Ferrari (nas fotografias). Vejam bem a importância do jogo, que teve direito a seis páginas do jornal, ainda em formato gigante. Naquele tempo era assim. Tudo à grande!
O ‘aziado’ Mozer e o ‘gentleman’ Chris Waddle
Recordo que naquela noite tive uma missão quase impossível. Estava incumbido de fazer a reportagem junto dos jogadores do Marselha. Mas a efervescência do ambiente e a azia do presidente Bernard Tapie motivaram a discriminação dos jornalistas portugueses. Este, bastante irado, foi à sala de imprensa, com o treinador Gérard Gili. Ambos falaram para uma legião de franceses. Não queriam falar aos portugueses mas, já de saída, Bernard Tapie disse. «Foi uma vergonha o que se passou aqui. O árbitro tirou-nos da final. Fez tudo para o Benfica ganhar. Até com um golo irregular. Houve uma cumplicidade da imprensa portuguesa com os dirigentes do Benfica para montar um ambiente hostil. O Benfica tem muito peso. Ainda assusta muita gente», afirmou.
Os franceses, de revanche, primaram pela discriminação dos repórteres portugueses. Dirigentes e jogadores refugiaram-se no balneário (que tinha saída direta para a rua). Todos lá dentro, onde se ouvia enorme algazarra, de ânimos exaltados. Não tivemos alternativa senão ficar cá fora, esperando os jogadores porque tínhamos uma reportagem para fazer. A certa altura, um dirigente do Marselha abriu a porta e mandou entrar os jornalistas franceses, autorizando-os a entrevistar os jogadores. Mais de meia hora de espera e ninguém saía. Finalmente, abriu-se a porta e saíram todos de uma vez, em grupo compacto, a caminho do autocarro, que estava a uns 30 metros dali. Naturalmente, como se impunha, todos queríamos falar com o Mozer (ex-Benfica). Mas ele saiu impetuoso, deu um beijo na boca da mulher, Cristina Mozer, que o esperava à porta, e, sem se deter, voltou ao grupo, atropelando os repórteres que o interpelavam no trajeto para o autocarro. Que imagem…
Aliás, todos saíram em passo acelerado, com maus modos, arreliados e aos safanões. Sem uma palavra. Por acaso, Tigana, sempre a andar, ainda aproveitou para dar um recado: «O Benfica criou um ambiente terrível. Insuportável. Quem ganhou este jogo foi um conjunto de circunstâncias que o envolveram. E este golo foi uma vergonha.»
Contudo, no meio de tanta agitação e arrogância, surgiu o fair play e a simpatia de um senhor jogador britânico, chamado Chris Waddle. Foi o último a sair do balneário e, contra a vontade dos dirigentes, que o empurravam para seguir, ele parou, pousou o saco que trazia na mão e, por breves instantes, foi o único jogador que se dispôs a falar connosco. «Estou desapontado. Não esperava perder. O Benfica tem boa equipa, é muito forte, mas merecíamos ir à final. Ainda mais, pela forma como o Benfica marcou. Foi um golo de andebol. Como é possível? E sobre o ambiente que rodeou o encontro… nem quero falar!», comentou este gentleman inglês, cuja atitude de simpatia e respeito pelo função dos jornalistas, sempre elogiei ao longo da vida, reportando-a como exemplar. Não me esqueço que, naquela noite, ele salvou o meu trabalho. Sir Christopher Waddle!