OPINIÃO A (in)capacidade do futebol
'O poder da palavra', por Duarte Gomes. «Até que ponto pode o futebol impedir os principais ativos de exercerem opinião?»
Ninguém terá dúvidas de que estes são tempos desafiantes para a maioria das pessoas. Essa verdade não termina nas fronteiras com Espanha: estende-se para lá delas, atingindo os quatro cantos do globo mas de forma nem sempre transversal. O surgimento da pandemia terá sido o momento que marcou o início visível dessas dificuldades, que o impacto de conflitos armados posteriores (primeiro na Ucrânia, depois no Médio Oriente) e algumas catástrofes naturais vieram apenas agravar.
A insegurança global cresceu e até o mercado imobiliário enlouqueceu, os ordenados não acompanham a insanidade dos preços e assim é difícil que muita gente de bem consiga manter vida digna. O futebol, atividade universal e escape perfeito para muitas dessas dores, não parece ter força para evitar as consequências desta fase tão conturbada.
Claro que the show must go on e o jogo, da formação aos profissionais, dos amadores aos veteranos, continua a ser um espetáculo fantástico, jogado e treinado por pessoas competentes e acompanhado, com entusiasmo e paixão, por muitos e bons seguidores. Mas é impossível que evite totalmente a influência perversa destes tempos.
Um dos maiores exemplos tem a ver com a forma como a indústria não consegue, como sempre tentou, vedar a influência da política ou religião nas suas fronteiras: são várias as equipas com conflitos históricos (como acontece com clubes deslocados das suas cidades ou com antagonismos ideológicos entre equipas do mesmo país) e muitos os jogadores de topo chamados à atenção ou até castigados por assumirem posição em relação a temas estruturantes. Neste caso, vale a pena perguntar: até que ponto pode o futebol impedir os seus principais ativos de exercerem o seu direito à opinião? Afastar, sancionar, punir alguém por defender algo em que acredita... será legítimo? Será justo?
Este futebol, o nosso, o do politicamente correto, o que caminha lado a lado com as tendências destes dias, é o mesmo que assiste impotente a sucessivas manifestações de racismo, xenofobia e extremismo, um pouco por todo o lado. É o mesmo que se mostra incapaz de combater eficazmente atos de violência em vários locais, inclusivamente em cidades onde se disputam grandes competições internacionais. É o mesmo que testemunha atos tresloucados que vitimam adeptos que queriam só apoiar a sua seleção num país estrangeiro. É também o mesmo que não consegue impedir meia dúzia de energúmenos de agredirem à pedrada equipa que estava junto ao estádio do adversário.
Não é tudo mau, pelo contrário, mas as conclusões parecem-me evidentes: por muita força, beleza e qualidade que tenha (e tem), a indústria do futebol jamais conseguirá afastar comportamentos, gestos e atitudes provocadas por fenómenos bem maiores do que ela. O futebol é mágico mas não faz milagres.
Eu que o diga, que há uns anos valentes arbitrei um jogo (que não chegou ao fim) entre Azerbaijão e Arménia (qualificação para o Europeu de sub-19). A partida foi interrompida devido à invasão de adeptos dos dois países, que trocaram graves agressões entre si. Agressões que se estenderam aos jogadores dos dois emblemas. Um jogo disputado em campo neutro (Chipre) e cujos efeitos prolongaram-se até ao hotel onde estávamos hospedados.
É certo que não há muito que se possa fazer para impedir algumas atrocidades e respetivas ações/reações, mas há sempre qualquer coisa para tentar. O melhor é continuarmos a insistir nas boas práticas, apelar à paz, ao desportivismo, e ensinar pelo exemplo: a conduta dos agentes desportivos tem que ser sempre um modelo de referência para o melhor que se pode esperar no desporto. Nunca o contrário.
Para bélico já chega o clima exterior.