A erosão acelerada do Benfica
Rui Costa, presidente do Benfica (Foto: Miguel Nunes)

A erosão acelerada do Benfica

OPINIÃO23.07.202408:46

os clubes de futebol que são detidos por sócios, como é o caso do Benfica, e em particular um clube tão grande e importante como o Benfica, devem operar com base num desígnio simples partilhado por todos, que neste caso é também central à identidade do clube: vencer, vencer e vencer

 Pode às vezes parecer quando as pessoas são mais vocais em relação a pontos de vista divergentes, mas os detentores de poder num clube de futebol não são proponentes de uma ideologia contra outra. São, fundamentalmente, gente que pretende manter e, sempre que possível, reforçar o seu poder. É o tempo que torna as suas ações ideológicas. Quanto mais tempo passa, maior a sedimentação de um conjunto de ações que, somadas, se tornam identitárias, culturais, definidoras até da instituição. A vida, em particular a minha e a do Sport Lisboa e Benfica, tem-me ensinado que os atributos mais substantivos de quem ocupa o poder num clube de futebol não são derivados de um conjunto de ideias ou preceitos filosóficos particularmente complexos. Concordamos no essencial, mas há uma diferença entre motivos simples e motivos simplórios.

Em concreto: os clubes de futebol que são detidos por sócios, como é o caso do Benfica, e em particular um clube tão grande e importante como o Benfica, devem operar com base num desígnio simples partilhado por todos, que neste caso é também central à identidade do clube: vencer, vencer e vencer. Não repito o verbo para ênfase poético. É mesmo preciso vencer repetidamente no Benfica. Não fui eu que inventei o clube. É nisso que as pessoas se alistam. Era assim quando nasci e, no essencial, pouco mudou, ainda que os últimos anos nos tenham confundido e por vezes pareça que o seja outro o desígnio que hoje nos deve unir: vender, vender, vender. Tentarão convencer-nos de que não há ideologia que sobreviva à inviabilidade dos modelos económicos, e de que pouco mais há a fazer para lá do que já foi feito. Esse auto-convencimento, quando manifestado pelas pessoas certas, tende a criar um odor putrefacto de satisfação connosco mesmos. É um sinal nauseabundo daquilo que falta: ambição, visão, capacidade, concretização, e, já agora, valores inegociáveis. Valores inegociáveis como se fossem uma comissão de Ulisses Santos. Valores para os quais olhamos e não nos fazem pestanejar, de tão certos que estamos da sua rectidão. Não fosse o olfacto humano e poderiam eventualmente convencer-nos que é disto que se trata, afinal, o Benfica. 

Não me parece que exista, portanto, uma ideologia que comanda a ação neste Benfica. É antes uma lógica de manutenção de poder, um estilo de gestão formado ao longo de décadas, com resultados que na sua maioria não correspondem à grandeza do Benfica. E depois existe o enorme espaço vazio entre os actos e as reais motivações de quem os pratica. São comportamentos que deixam alguma margem para interpretação, num espectro alargado que vai da bonomia de um «isto é gente que está a fazer o melhor que sabe e pode» até ao menos simpático «quando é que o clube se livra disto?».

Admito que a minha leitura não seja a única. Estou receptivo a outras interpretações e falo sobre o Benfica com gente que não pensa como eu. Admito, por exemplo, que exista uma ideologia ou um conjunto de princípios claros no Benfica. Só me falta ver alguém no clube tentar explicá-los. Ao fim de alguns anos à espera, depreendo que não haja real interesse nisso ou condições para o fazer, sob pena de ter que se sujeitar uma ideologia ao famoso teste de stress conhecido como realidade. Veja-se por exemplo o que aconteceu à palavra transparência, usada e desusada em campanha eleitoral pelo atual presidente, para hoje se ver envolta num mar de opacidade. Eu tentei e não consegui, mas convido toda a gente a fazer o mesmo. A transparência do Benfica não vem no dicionário.  

Surge tudo isto a propósito de uma entrevista dada há poucos dias por Jaime Antunes, membro dos orgãos sociais e administrador da SAD. A entrevista torna-se intrigante, em primeiro lugar porque nada foi dito aos sócios ou à CMVM sobre quem faz o quê atualmente no clube. Saíram pessoas, não entraram novas, e tem-se mais uma vez como normal não fornecer explicações concretas sobre o que foi feito ou está a ser feito. Mas não é só isso que me intriga nesta entrevista. Algumas respostas parecem evidenciar a ausência de um alinhamento entre aquilo que é respondido pelo entrevistado e aquilo que pensa o presidente do Benfica, a quem o entrevistado teoricamente reporta e com o qual trabalha diariamente. Fica até a sensação de que a entrevista partiu da iniciativa de Jaime Antunes e não de uma decisão concertada de comunicar com os sócios, idealmente fornecendo explicações concretas para as preocupações sentidas.

É muito estranho que alguém supostamente tão próximo do presidente diga, a propósito da atual comissão executiva, a operar em versão amputada e sem as condições necessárias para gerir o universo empresarial do Benfica, que «acredita que o presidente estará a trabalhar nisso», sendo «isso» a renovação ou o reforço da dita comissão executiva, que há muito vem sendo adiado. Regista-se com preocupação. Não se espera tamanha falta de comunicação entre os dois primeiros nomes dos orgãos sociais do clube e da SAD.  De resto, não me lembro de alguma vez ter ouvido Rui Costa falar sobre este assunto tão importante para o presente e para o futuro do clube, mas Jaime Antunes admite que as condições atuais, que se arrastam há meses, não permitem uma gestão adequada.

Ainda assim, não foi essa a resposta que me causou maior perplexidade na entrevista. Foi esta: quando confrontado com os resultados da auditoria, Jaime Antunes afirma que ficou «confortável por saber que os dirigentes não prejudicaram o Benfica.» Um membro dos orgãos sociais do clube, e atual ou futuro administrador financeiro da SAD (?), olhou para um relatório que, perante 51 contratos intermediados por 76 agentes, identifica operações sistematicamente caracterizadas como opacas, que produziram comissões acima das praticadas pelo mercado, respeitantes à transação de atletas que, na sua esmagadora maioria, se traduziram em desempenho desportivo nulo ou inexistente, e daí inferiu que não só não existem motivos para preocupação, como até acrescenta «é preciso valorizar» os resultados impecáveis da auditoria no que diz respeito à atuação dos dirigentes. Em 2018, confrontado com a detenção de Paulo Gonçalves, presumido inocente à data, Jaime Antunes disse que “tudo o que seja envolver o Benfica em situações e atitudes menos corretas é mau e o Benfica tem que ser salvaguardado nestas situações”. Apetece perguntar: o que mudou entretanto para que Jaime Antunes seja hoje tão brando na avaliação de decisões que foram manifestamente ruinosas para o Benfica, e de cujos motivos podemos e devemos duvidar? Podemos tentar reduzir a perplexidade a uma minoria de sócios, mas assobiar para o lado nesta matéria é como tentar convencer o mundo de que o sol é verde. Até a era da pós-verdade tem os seus limites.

Aqui reside o problema. Quem está no Benfica hoje vive convencido, por ação ou por omissão, de que tudo quanto serviu até agora para persuadir os Benfiquistas de que existe um rumo claro, uma forma correta e inatacável de fazer as coisas, continuará a ser suficiente. Quem não pensar assim representa, como explica Jaime Antunes, uma pequena minoria insatisfeita. Ignorando esse ruído, nada de mau há a apontar até aqui. A entrevista é, aliás, pródiga na comunicação dos múltiplos progressos imateriais do clube, sem no entanto reconhecer matérias em que se exija ao clube melhorias.  

Voltando ao início: não sei que ideologia hoje determina o destino do Benfica, na medida em que apenas posso inferir que ideologia será essa com base nas ações e nas palavras de quem lidera o clube. E não quero ser demasiado duro na avaliação. Direi assim: a existir um ideologia, não consigo ver nesta senão uma série de concessões aos princípios que deveriam orientar o Benfica de acordo com aquilo que, em muitos aspectos, já foi. Essas cedências são historicamente reconhecidas e produziram um efeito violentíssimo na identidade do clube. Não o sentimos na cultura vigente, que parece estar de pedra e cal, e em negação. Sentimo-lo num processo de sedimentação, mediático e alimentado coletivamente por amigos ou inimigos do Benfica, que vai fazendo com o clube se vá tornando, aos poucos, uma coisa diferente.

Os fenómenos de erosão tendem a produzir este tipo de ilusão. Quando está sol e a maré enche, parece tudo igual, tal como nos dias em que a bola entra. Depois vêm os invernos mais rigorosos. A areia é levada, as falésias sucumbem, o caminho à superfície torna-se rochoso e acidentado, até o que julgávamos enterrado reaparece, e o desenho do território muda para sempre. De pouco serviu assobiarmos para o lado quando o sol brilhava. Mas, um clube em que não existe reconhecimento da necessidade de fazer mais, melhor, e muito diferente daquilo que se fez até aqui, e que continua a ser sujeito a danos reputacionais quase semanais, continuará a ser um clube em erosão acelerada. A bola pode ir entrando, mas as balizas ficarão mais pequenas, a relva envenenada, e nem todas as cadeiras do estádio sobreviverão à intempérie. Lamentavelmente, quem está hoje no Benfica não parece querer saber.