Opinião A divulgação dos áudios
'O poder da palavra', por Duarte Gomes. «Todas as comunicações provam a honestidade dos seus autores; não há nada de premeditado ali».
Não era preciso ser adivinho para perceber que a divulgação pública das comunicações entre árbitros e vídeoárbitros iria ser alvo de críticas ferozes, por parte dos mais diferentes quadrantes.
Antes até da própria iniciativa ser anunciada (e se calhar pensada), já se sabia que, se um dia surgisse, muitos daqueles que então censuravam a ausência de esclarecimentos por parte do Conselho de Arbitragem seriam os primeiros a apontar o dedo ao que quer que viesse da partilha inédita: o conteúdo, a forma, o estilo, a decisão em si, enfim, tudo e mais alguma coisa. Era certo, certinho como dois e dois serem quatro.
E era certo, certinho, porque infelizmente já aconteceu mais vezes, noutras circunstâncias. Sempre que a arbitragem tenta fazer algo que sugira proximidade ou transparência no contacto com o exterior há ruído e controvérsia prolongada. Há não muito tempo, por exemplo, o reconhecimento público de um erro tecnológico com impacto real no resultado de um jogo criou ondas de choque por todo o lado: nos que se sentiram perseguidos pela opção, nos que acharam que ela era parcial ou discriminatória, nos que conformadamente lá diziam«pedir desculpa já não muda nada».
Na arbitragem é assim, preso por ter e preso por não ter. Por alguma razão, Collina insistia em dizer-nos que a melhor entrevista era aquela que não se dava. Sempre que a classe tenta dizer, fazer ou explicar qualquer coisa cá para fora acaba por ser salpicada com pedaços de lama. Mais cedo ou mais tarde, a coisa vira-se contra ela. É inevitável e não, não é exagero nem calimerice: são décadas de história a prová-lo, basta googlar.
Mas essa constatação não pode fazer recuar a estrutura. Não a desobriga. Não pode levá-la à inflexão de rumo, porque este é de facto o caminho certo.
Nos dias de hoje, o futebol precisa desesperadamente de esclarecimento, explicação e transparência. Mesmo que a maioria das pessoas conteste a posição, haverá sempre duas ou três que entenderão o que está em causa. Haverá duas ou três que valorizarão a ideia e perceberão o espírito que lhe está subjacente.
E no caso desta divulgação, desta partilha de conteúdo áudios, a essência — aquilo que verdadeiramente deve ser demonstrado ao mundo da bola — é que todas as comunicações que se ouvem provam uma coisa absolutamente crucial para a credibilidade do jogo: a honestidade dos seus autores. Não há nada de premeditado ali. Não há má-fé, não há erro intencional, não há benefício estratégico, não há malandrice nem chico-espertice.
A espontaneidade e sinceridade de quem fala em campo ou em sala é inatacável e só alguém de alma muito suja pode pressupor o contrário. Pode-se até criticar a decisão que é tomada, a confusão na comunicação, a hesitação pontual, o estilo menos prosaico... mas se há algo que não se pode colocar em causa é a integridade da intenção. Ela é clarinha como água e nos dias que correm essa é uma vitória importante da arbitragem: «Podemos até ser incompetentes, mas não somos desonestos.» O que se espera, de ora em diante, é o passo seguinte: a melhoria gradual de um processo benigno, que deve evoluir para patamares de maior eficácia, qualidade e clareza.
Houve de facto momentos verbais menos bonitos, atropelos protocolares (o VAR nunca pode chamar o árbitro se tem dúvidas sobre o que quer que seja), suores a afetar a qualidade das conversas e até telemóveis credenciados que ninguém sabia serem legais, a fazer de Plano B, C ou D. São situações que devem ser evitadas, tais como são as análises de
clipes demasiado desfasados no tempo, que acabam apenas por ressuscitar polémicas já mortas e enterradas. Dores de crescimento que, estou certo, a classe encontrará formas de equilibrar, melhorar, fazer evoluir.
O processo está certo. O resto virá por acréscimo.