300 dias

OPINIÃO07.09.202107:05

Que o caminho seja pouco sinuoso, rápido e cristalino, contra os temores de um clube eternamente dividido

HÁ muita sabedoria popular que os benfiquistas podem confirmar sem hesitação. Os benfiquistas sabem que o clube tem uma dimensão inigualável em Portugal e poucas vezes igualada no resto do mundo. Que o hino do clube cantado a plenos pulmões com o estádio cheio é uma coisa arrepiante. Que regressar ao estádio é uma sensação comparável com um regresso a casa, mesmo que o visitemos com as bancadas vazias. Encontramos sempre os fantasmas felizes dos colegas de bancada ou dos que ali marcaram e celebraram connosco. Os benfiquistas sabem que o voo da águia Vitória é um momento que não cansa. Que os adeptos que acompanham a equipa são uma parte indissociável do seu sucesso. Que jogamos sempre em casa, seja onde for em Portugal (às vezes até fora). E que a união entre a equipa e os adeptos é uma das forças inegáveis do Benfica. Nos melhores momentos não se trata simplesmente da celebração de um golo ou de uma boa exibição. É a convicção de que, na bancada como no relvado, todos queremos o mesmo

Éverdade que os sócios e os adeptos não desistem do Benfica, mas também é um facto que esta união tem sido testada como há muito não acontecia. A intermitência exibicional, uma nova equipa técnica cuja primeira época foi um passo atrás, a instabilidade diretiva que se tornou um tema inevitável na vida do clube, a crise reputacional vivida nos últimos anos, a pandemia que afetou atletas e funcionários do clube e a ausência de adeptos nas bancadas; tudo isto acabou por se sentir de alguma forma no relvado e, consequentemente, nos que torcem por fora.

SÃO marcas que infelizmente não se apagam com meia dúzia de vitórias e ainda não é certo o dia em que poderemos assinalar um verdadeiro virar de página no clube. Por força dos fatores que enumerei, o Benfica vive hoje uma crise de referências, e essa levará tempo, firmeza, arte e coragem até ser ultrapassada

TEREMOS em breve uma nova direção eleita, mas falta saber o que essa direção nos trará, o que está disposta a fazer para recuperar a dimensão institucional e organizacional do clube, até que ponto os novos rostos ou os rostos do passado saberão aprender com os erros do passado, e, finalmente, em que termos os sócios farão essa importante escolha. 

TEMOS também um plantel superior ao da época passada e começamos a reconhecer novos líderes ou líderes reforçados dentro de campo, mas às vezes sinto que nos faltam ídolos. É uma missão complicada. Primeiro temos de olhar para o planeamento desportivo, que nas últimas épocas nos deu algo com que sonhar mas poucas alegrias de verdade. Depois, porque há uma escassez de atletas predestinados e, entre esses, poucos estão ao alcance do Benfica. Finalmente, porque o contexto favorece muito o aparecimento desses mesmos predestinados. Até o nosso saudoso Jonas — um dos melhores que vi jogar com o manto sagrado — foi penalizado por fases menos boas da equipa ou, se lhe perguntarem, ele responderá com um sorriso no rosto que sofreu sempre que o amigo André Almeida

VEM isto a propósito da série documental 300 dias criada pela equipa BTV para acompanhar o último ano da vida do capitão André Almeida, que muitas alegrias já nos deu, mas talvez nunca como nesta peça tenha mostrado o que faz dele uma referência num Benfica que precisa delas. É um retrato raro, penso que inédito em Portugal, da recuperação de um atleta de alta competição num contexto de grande provação individual e de grandes provações coletivas. É uma peça muito bem conseguida que consegue quase sempre concentrar-se na história do jogador sem a desvirtuar e sem a tornar desinteressante. Ajuda muito que o acesso à vida do atleta tenha sido quase permanente, ou que André Almeida seja uma pessoa muito carismática fora do relvado, como ajuda que os pais aceitem participar e demonstrem o amor que sentem pelo filho. Os muitos jogadores e funcionários do clube que aparecem ao longo do documentário transmitem a dose certa de intimidade e a vontade de partilhar a sua visão desta história. Também ajuda que esta peça se encontre igualmente disponível nos meios digitais, para chegar ao máximo número de adeptos. Há mais que poderia ser dito sobre os méritos da coisa, mas o mais importante é isto: é um conteúdo que me faz gostar ainda mais do Benfica e de quem o representa.

Étambém uma peça que compreende as evoluções no perfil dos consumidores de futebol, os seus interesses em matéria de conteúdos, conseguindo a virtude de aproximar adeptos e atletas de forma desempoeirada sem fazer demasiadas cedências a algumas artificialidades do marketing. Aliás, o melhor marketing é mesmo este: uma verdade apresentada de forma inteligente, bem humorada e emotiva. Num mundo em que tudo é quantificável e o talento parece medido ao milímetro, tenho dúvidas que alguém tivesse previsto a longevidade de André Almeida no Benfica ou a importância que ganharia entre treinadores, colegas e adeptos. O site transfermarkt, especializado na avaliação do valor de mercado dos jogadores, afiança que o labor de André Almeida situa o valor dos seus direitos desportivos em 5 milhões de euros. Eu vi os primeiros episódios deste documentário, assim como os anos todos que vieram antes disso, e acho que ele vale bastante mais.

NÃO creio que a intenção inicial fosse exatamente essa quando se começou a filmar em agosto de 2020, mas a história de André Almeida é também o espelho de um caminho que, creio, estamos todos, nós benfiquistas, a fazer juntos. Os 300 dias da história de um capitão do Benfica até ao dia em que volta a pisar o relvado, até ao abraço dos adeptos, podem e devem ser uma inspiração. Haja vontade de todos os que participam na vida do clube para promoverem essa recuperação, para nos unirmos cada vez mais em torno da equipa, daqueles que a lideram, dos princípios do clube. Para que a crise de referências se torne definitivamente parte de um passado em pratos limpos. Que o caminho seja pouco sinuoso, rápido e cristalino, contra os temores de um clube eternamente dividido, à mercê de uma guerra infinita em que todos se arriscarão a perder.