Espaço Universidade Sintomas preocupantes (artigo de Armando Neves dos Inocentes, 45)
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O panorama desportivo actual e todas as suas envolventes, tanto a nível nacional como internacional, mostram-nos grandes mudanças. Umas para melhor, dirão uns, outras para pior, dirão outros… Uns, vítimas de uma ignorância colectiva que alastra cada vez mais, outros desassombrados por análises conscientes e fundamentadas. Uns, louvando perspectivas axiológicas, outros, desassossegados por inquietações éticas e morais. Alguns, mortos na ilusão de continuarem vivos, outros não podendo fazer mais nada do que somente assistir à morte.
E se o desporto evolui a uma velocidade vertiginosa «num mundo em que só a mudança é imutável» (1), há que reflectir sobre o passado (o próximo, o recente, e o afastado) e analisá-lo para se construir um novo futuro – não o desgastado futuro todos os dias abordado que não é mais do que o prolongamento desse passado. Para que a história não nos continue a mostrar que nada se aprende com a história. E analisar implica uma crítica fundamentada para que se encontrem soluções, até porque as adaptações (mais as acomodações e menos as assimilações) tendem a ser apreendidas como não-problemáticas e não geram um novo panorama – mais harmonioso e saudável. Os adeptos, conscientes ou não, deliberados ou vítimas do acaso, do «não-problematismo» acabam por se submeter ao sistema. Vivem de clichés que acabam por se transformar em mitos. Rejeitam análises críticas e não buscam o sucesso no diferente… São subservientes, amorfos… O sincretismo é fácil, cómodo, mas cria patologias... A análise dá trabalho, necessita de pesquisa, de bibliografia, de cruzamento de dados… necessita de desmontar factos. Saber analisar é uma competência, pelos vistos, só ao alcance de alguns.
Mas a mudança gera receios e ansiedades. A expectativa do novo – melhor ou pior – revela mais do que preocupação pelo desconhecido, mais do que temor pelas incertezas. A expectativa do novo motiva o medo e gera até o terror. E paralisa. E paralisando, o «novo-novo» só consegue «criar» reproduções, as quais proliferam tanto pelas dúvidas, pelas incógnitas e pelas patologias como pela (des)inovação de situações que, novas só na roupagem, continuam a dar pão a crentes e a crenças. Pão e circo…
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A teoria da complexidade de Edgar Morin (2) mostra-nos como tem de ser analisado não só o desporto em si mas também a actividade de todos os agentes desportivos: «juntai a causa e o efeito, o efeito voltará sobre a causa, por retroacção, o produto será também produtor». Demasiada preocupação em determinar as causas reduz a análise sobre os efeitos, até estes se tornarem de novo causas. O mesmo é confirmado por Peter Berger e Thomas Luckmann (3) quando nos dizem que «o produto age sobre o produtor». E teremos de estar atentos a que se esse produto encerra valores, ele também é comercializável, logo, envolvendo enormes quantias monetárias e estando sujeito à lei da oferta e da procura, ou seja, a uma economia de mercado – com todas as suas implicações. Repare-se que os custos da preparação para os J. O. de Tóquio dos portugueses (dos presentes e do ausentes) cifram-se em 18,5 milhões de euros. “Conhecimento é um produto social e conhecimento é um factor na transformação social” (3). A questão surge quando pseudo-conhecimento (mascarado de conhecimento), como produto, retroage sobre o produtor… O produto, ao influenciar o produtor, torna-se assim também um criador de patologias…
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Em 2018 foi publicado entre nós um livro que passou despercebido, intitulado «A Morte da Competência» (4), de Tom Nichols. Nesta obra o autor mostra-nos que as pessoas não se limitam a acreditar em «verdades» sem nexo, mas resistem ativamente a aprender só para não terem de abdicar das suas crenças, apresentando-nos o facto de todos nós termos problemas como o do viés de confirmação, “que é a tendência natural para aceitarmos apenas as provas que confirmam aquilo em que já acreditamos.” O que nos leva à velha máxima de que não adianta explicar a quem não quer compreender…
Nichols afirma que, em relação à causa e efeito, a natureza das provas e a frequência estatística são demasiada areia para a camioneta do senso comum. E são demasiada areia porque é sempre mais fácil emitir uma opinião não fundamentada recorrendo a estereótipos e a generalizações do que fazer verificações factuais, isto é, «determinar o porquê depois de se ter confirmado o quê».
Recorrendo ao efeito Dunning-Kruger, Nichols apresenta-nos os motivos pelos quais as pessoas não são capazes de aceitar as diferenças de conhecimento ou de competência. Numa época em que nos encontramos atolados no meio de muita informação, esta não gera o conhecimento que seria necessário. E se há uma diferença entre o perito e o leigo, este último sente-se com as competências do primeiro dado ter a ‘internet’ à mão: «a internet junta pseudofactos e ideias pouco amadurecidas, e depois espalha essa informação errada e esses raciocínios débeis por todo o mundo electrónico.» E a uma velocidade estonteante. A ‘internet’ é um ambiente que abre a porta a que sejam o ‘marketing’, a política e as decisões fundamentais de outros leigos, e não a avaliação de peritos, a definir os conteúdos.
Neste livro Tom Nichols mostra como a Wikipédia é uma excelente lição sobre os limites da substituição da competência promovida pela ‘internet’, até porque para o leigo a Wikipédia serve perfeitamente. Nada melhor do que uma informação instantânea que possa fazer com que uma pessoa sem opinião passe a ter uma opinião errada. Difícil – e trabalhoso – é usar instrumentos rigorosos como a investigação, o recurso a fontes e a verificação de factos.
Os meios de comunicação social também não escapam a uma análise lúcida de Tom Nichols: o entretenimento, a informação, o comentadorismo e a participação cívica são uma mistela caótica que, mais que informar as pessoas, lhes cria a ilusão de estarem informadas. Isto acontece porque a tecnologia se associou ao capitalismo e deu às pessoas aquilo que elas querem, mesmo quando não é o melhor para elas. Duas conclusões retiradas do seu texto são importantes: 1ª – a parcialidade da comunicação social, de várias formas e sobre vários assuntos, é real; 2ª – o crescimento de novos meios de comunicação e o declínio da confiança estão ambos intimamente ligados à morte da competência.
Os atletas e os seus treinadores são peritos, afirma o autor deste livro. Mas também refere que peritos numa matéria são leigos numa outra. Fazemos aqui um parêntesis para referir que desportistas (competidores) e treinadores não são peritos em desporto, em gestão do desporto ou em sociologia do mesmo – logo, não são analistas do fenómeno, a não ser para darem conferências de imprensa ou receberem troféus à frente de painéis publicitários para que os logotipos de várias marcas inundem subliminarmente o nosso cérebro a fim de se criar ou prolongar o consumidor. E, recorrendo de novo à obra mencionada, os peritos não podem garantir resultados, os peritos apenas propõem hipóteses. Contudo, não podem fazer escolhas em relação aos valores. Nichols é peremptório ao afirmar que «os peritos não podem obrigar as pessoas a fazer refeições saudáveis ou a praticar desporto. Não podem arrastar as pessoas para que não vejam o reality show do momento e obrigá-las a olhar para um mapa. Não podem curar por decreto o narcisismo das pessoas».
O sintoma mais preocupante actualmente não é a ignorância da maior parte dos cidadãos. O mais preocupante é o orgulho nessa ignorância. A morte da competência tem origem em características intrínsecas à natureza humana segundo Nichols, mas também é o resultado inevitável da modernidade e da abundância. E do consumismo, acrescentaríamos nós…
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Em 1948, quando Cândido de Oliveira – então treinador de futebol do Sporting – afirmou no final de um Benfica-Sporting que «somos bestiais quando ganhamos e bestas quando perdemos» estava longe de pensar que um dia estaria errado. Recorrendo tanto à comunicação social escrita como à televisionada, tanto à ‘internet’ como às redes sociais, é-nos dada a oportunidade de vermos que hoje Cândido de Oliveira não teria razão ao constatarmos como pessoas com responsabilidades no desporto (e nos meios de comunicação social) qualificam os nossos resultados, quer sejam eles em campeonatos europeus, campeonatos mundiais ou até mesmo nos J. O. que decorrem. Temos tido bons resultados! Somos bestiais mesmo quando perdemos! O que quer dizer que somos pequeninos! Continuemos a pensar pequenino…
(1) Pires, G., 2007. Agôn - Gestão do Desporto o jogo de Zeus. Porto: Porto Editora.
(2) Morin, E., 2003. Introdução ao Pensamento Complexo. Lisboa: Piaget.
(3) Berger, P. L., & Luckmann, T., 2010. A Construção Social da Realidade. Lisboa: Dinalivro.
(4) Nichols, T., 2018. A Morte da Competência. Lisboa: Quetzal.
Armando Neves dos Inocentes é Mestre em Gestão da Formação Desportiva, licenciado em Ensino de Educação Física, cinto negro 6º dan de Karate-do e treinador de Grau IV.