Será que o fair-play é a essência do desporto? (artigo de Vítor Rosa, 117)

Espaço Universidade Será que o fair-play é a essência do desporto? (artigo de Vítor Rosa, 117)

ESPAÇO UNIVERSIDADE25.07.202016:57

Eric Arthur Blair, conhecido pelo pseudónimo Georges Orwell (1903-1950), escritor, jornalista e ensaísta inglês, disse que o “verdadeiro desporto não tem nada a ver com o fair-play. É cheio de ódio, de invejas, de não respeito das regras e do prazer sádico em olhar para a violência. Por outras palavras, é a guerra sem tiros”. É num artigo publicado na revista inglesa “Tribune”, de 14 de dezembro de 1945, que Georges Orwell mostra, com uma força devastadora, o caráter falacioso dos discursos sobre a nobreza do desporto.

“Eu fico sempre estupefacto ao ouvir as pessoas dizerem que o desporto favorece a amizade entre os povos (…). Ao nível internacional, o desporto é abertamente um simulacro de guerra”. Estas palavras têm que ser colocadas no seu contexto histórico, mas, de facto, algumas verdades antropológicas essenciais não devem ser esquecidas. Por um lado, o desporto tem uma relação nativa com o confronto. Por outro lado, tem (ou teve) uma função social de preparação para a guerra, estimulando e fortificando o corpo para o combate, ou seja, o tal “rebronzeamento da raça”, nas palavras de Pierre de Coubertin. A esta função junta-se a necessidade de criar os laços entre os membros de uma comunidade, pela exaltação de uma identidade coletiva.

Num outro texto, “Massacres por uma bagatela”, publicado na revista “Quel corps ?”, n.º 30-31, junho de 1986, o filósofo Patrick Tort lembra que o “desporto tem duas lógicas: uma lógica de guerra e uma lógica de paz, e que a prática moderna do desporto não conseguiu evoluir no sentido da paz, apesar das declarações públicas mais universalistas e aparentemente mais afastadas do nacionalismo. “O desporto é uma guerra em miniatura”, reitera Michel Caillat, sua obra “Sport : l’imposture abolue” (2014) . A transgressão é a regra, a falta inteligente é, muitas vezes, saudada.

Ao contrário do que disse o filósofo Bernard Jeu (1929-1991), no seu livro “Le sport, la mort, la violence” (1975), a morte não é apenas simbólica e a violência limitada ou codificada. Ela pode ser real, como já aconteceu várias vezes. O futebol, o desporto mais popular, tem atingido por algumas catástrofes. Os estádios são locais propícios para a expressão de agressividade, de frustração e de afirmação identitária. Num universo concorrencial, o atleta, preparado física e mentalmente, deve estar motivado e ser dominador. Ele cultiva o “eu” (narcísico) e fixa os seus pensamentos num objetivo: ganhar. A violência, para muitos autores, é a essência do desporto e não o fair-play, isto é, o respeito pelas regras e pelo adversário.

Vítor Rosa

Sociólogo, Doutor em Educação Física e Desporto, Ramo Didática. Investigador Integrado do Centro de Estudos Interdisciplinares em Educação e Desenvolvimento (CeiED), da Universidade Lusófona de Lisboa