14 dezembro 2024, 09:45
«Nunca mais vou conseguir fazer nada»: o tabu desconstruído pelo desporto
No Centro de Medicina de Reabilitação Rovisco Pais, os utentes têm no desporto uma terapia
Diego e Gabriela ficaram paraplégicos. O desporto devolveu a liberdade a um e deu coragem a outro, depois de ambos terem conhecido uma nova possibilidade no Centro de Reabilitação de Rovisco Pais
O desporto pode mudar vidas.
A frase é um cliché. Verdadeiro, muitas vezes. E Diego Zambrano viveu isso na primeira pessoa. Ainda que não de uma forma romântica, como tantas vezes acontece.
Aliás, a história deste colombiano de 26 anos só não será catalogada como trágica pela forma como ele encarou aquilo que lhe aconteceu no dia 5 de outubro de 2021, em Coimbra.
Por um acaso. Ou uma sucessão inesperada de acasos.
Em janeiro de 2020, Diego chegou a Portugal para passar umas férias com a namorada de então, que tinha viajado da Colômbia para Portugal para ser ciclista profissional.
O surgimento da pandemia de covid-19 fechou os aeroportos e parou o mundo. E obrigou Diego a permanecer em Portugal para além dos três meses que tinha planeado.
E tudo bem com isso.
Tanto que Diego encontrou trabalho. Passou a ser empregado de mesa, algo que nunca fora antes. Sem problema. Até porque lhe permitia conciliar o trabalho com a paixão que tinha por ciclismo, que praticava no seu país, de forma lúdica.
Por cá, faltava-lhe uma bicicleta apropriada. Demasiado cara para alguém que tinha visto a vida mudar tão repentinamente. Mas ele não perdeu o foco e arranjou uma alternativa.
«Dava as minhas voltas numa bicicleta de BTT, andei meses a poupar até conseguir comprar uma de estrada. Nova! Uma semana depois, na segunda vez que saí com ela, estava a voltar a casa, apanhei um desnível, por causa de uma raiz de árvore que elevou o alcatrão. Perdi o controlo da bicicleta, fui projetado cerca de 10 metros, cai de costas e bati com a cabeça. Fiquei paraplégico.»
O relato é cru. Mas surge sem complexos. Diego Zambrano aprendeu a lidar com o que lhe aconteceu e, pouco mais de três anos depois, já não vive assombrado por fantasmas.
Isso é claro ao vê-lo nas atividades do Dia Paralímpico, promovido pelo Centro de Medicina de Reabilitação Rovisco Pais, na Tocha, em parceria com o Comité Paralímpico de Portugal. Sempre animado, ele experimenta o lançamento do peso. O badminton. O ténis de mesa. O tiro. E, claro, o ciclismo. Porque aquela queda de bicicleta que lhe tirou a mobilidade das pernas, não teve efeitos na paixão pelo ciclismo.
Também porque num dos acasos que lhe mudaram a vida, um mês depois do acidente, foi transferido dos Hospitais da Universidade de Coimbra para aquele centro, onde ficou internado durante nove meses.
Ali viveu quase um renascimento. E a aposta que o centro faz no desporto como parte integrante da recuperação acelerou o processo de aceitação que qualquer pessoa tem de passar ao ficar paraplégica.
«Era uma realidade completamente desconhecida para mim. Nem conhecia alguém com uma deficiência, por isso era um mundo a descobrir. Quando cheguei aqui, foi um choque, mas tive a sorte de conhecer os meus colegas e perceber que havia a possibilidade de continuar a viver num mundo com desporto, que era algo de que eu tanto gostava», admite.
«O desporto devolve-me a liberdade e permite-me desfrutar, sair de casa, distrair-me. Vivem-se emoções diferentes, como o espírito competitivo. Há uma competição saudável com os meus colegas, mas é competição em cada treino», acrescenta.
Os colegas de quem Diego fala é a equipa de andebol em cadeira de rodas, que integra há dois anos e compete no campeonato nacional. Pessoas que, antes de se tornarem companheiros de equipa do jovem colombiano, foram exemplo.
«Ver outras pessoas com o mesmo problema que eu e que fazem desporto foi e é sempre uma inspiração. Porque se eles conseguem, isso motiva-me a acreditar que eu também posso conseguir. E depois tornas-te também exemplo para alguém que teve lesões recentes. Porque há outras pessoas que vão olhar para ti e querer seguir os teus passos», orgulha-se.
Inspirar pelo exemplo.
No lugar de Diego esteve, há cerca de 20 anos, Floriano Jesus. Aos 16, um acidente de mota atirou-o para uma cadeira de rodas. Depois, precisamente no sítio onde agora dá o exemplo de como o desporto lhe permitiu ganhar uma nova vida, experimentou o basquetebol em cadeira de rodas. Ele que jogava futebol antes do acidente, praticou a modalidade de desporto adaptado durante «cinco ou seis anos», até que o Centro Rovisco Pais deixou de ter equipa.
14 dezembro 2024, 09:45
No Centro de Medicina de Reabilitação Rovisco Pais, os utentes têm no desporto uma terapia
Mas também por um acaso, mudou-se para Montemor-o-Velho, ali a 20 quilómetros. Foi morar para a capital portuguesa da canoagem. E da paracanoagem.
«Em 2018 integrei o projeto paralímpico, falhei o apuramento para Tóquio 2020 por uma vaga. Para Paris 2024 conquistámos a vaga para Portugal, mas perdi na seletiva interna por 40 milésimas», relata Floriano, que não se dá por vencido. A lesão trouxe-lhe também uma dose extra de resiliência.
«Acredito que ainda consigo ir lutar pela vaga para Los Angeles 2028. O desporto adaptado tem a vantagem de ter uma maior longevidade e permitir usufruir do desporto até mais tarde. Nós entramos num modo de competição, disciplina e rigor, que faz parecer que nos falta alguma coisa quando essa exigência falta», explica.
Floriano, porém, não é romântico. E sabe que o desporto adaptado não funciona para todos como salvador. Há um processo de aceitação que tem de ser feito.
«É gratificante estar aqui a dar o meu exemplo e mostrar a evolução que tive, com um grande peso do desporto nessa mudança. Mas no meu caso, o desporto apareceu depois de eu já ter feito o luto pela lesão. Há aqui pessoas que ainda estão no período de aceitação da deficiência. E estar a olhar para um desporto adaptado, não é assim tão encorajador. Eu passei pelo mesmo, sei do que falo. Muitos dos que estavam aqui a ouvir-me ainda acreditam que vão voltar a ter uma vida dita normal. Primeiro do que tudo, é sempre preciso aceitar», sublinha.
Durante as mais de cinco horas que A BOLA passa no centro, percebe-se aquilo que Floriano diz. Cada pessoa encara aquelas atividades com uma atitude diferente. Há quem se mostre entusiasmado desde o início. Aqueles que olham com desconfiança, mas se deixam convencer. E até quem veja naquilo uma perda de tempo. Quando podia estar a fazer fisioterapia para recuperar mais rapidamente.
Gabriela Nunes chega mais tarde às atividades. Mas traz um sorriso que leva para cada uma das experiências. E isso leva-nos a acompanhá-la quando se dirige à secção de ciclismo. Reticente. Mas a sorrir. Mas reticente.
«Vais experimentar, Gabi?» atira-lhe uma auxiliar.
«Vou. Eu tento. Mas eu tenho medo. Mas eu tento… mas tenho medo.»
A rapariga de 31 anos exterioriza o processo de automotivação. Porque, explica, tornou-se mais medrosa recentemente.
E isso teve pouco a ver com o acidente de viação que há seis anos a deixou paraplégica. E também não é culpa do problema posterior que a deixou temporariamente tetraplégica, numa situação revertida com recurso a intervenção cirúrgica que lhe permitiu recuperar a mobilidade dos membros superiores.
Não. O receio de Gabriela tem outra origem: o filho de dois anos! «Passei a ter muito mais medo depois de ter sido mãe. É só receio de cair e agravar a lesão», explica. Mas tenta. Porque sente que isso é importante.
E gosta. Gabriela gosta tanto da experiência naquela bicicleta que se desloca graças ao movimento circular que ela vai fazendo com os braços, que repete. E dá mais uma volta. E outra. E ainda mais uma. «Já começo a ficar cansada. Vou mais devagar? Não, que isto devagar não tem piada nenhuma», atira quando a assistência a provoca.
«Ela tem jeito e se quiser federar-se, diria que tem potencial para em pouco tempo estar a fazer pódios», confidencia o responsável da federação de ciclismo que dá apoio à atividade.
Mas quando confrontada com essa possibilidade, é Gabriela quem pede para… ir mais devagar.
«Gostei muito do ciclismo. No princípio foi um pouco assustador, porque nunca tinha experimentado, mas foi muito giro. Até hoje, não me via a fazer. Mas agora que experimentei, fiquei com algum interesse. Talvez não seja para já, já. Mas não fica fora de questão no futuro», garante em conversa com A BOLA.
E mesmo que aquele dia desportivo não a torne numa desportista, deixou-lhe ensinamentos.
«Às vezes temos de tentar coisas novas para ultrapassar o medo. Foi isso que eu senti ao experimentar algo que me metia medo, mas que gostei e me deixou com vontade de fazer mais», acrescenta.
Mas ainda mais importante para Gabriela, é aquilo que aquela experiência lhe vai trazer para a vida pessoal.
«O meu filho agora ainda é muito pequeno, mas quando ele for maiorzinho, já posso ensiná-lo a andar de bicicleta e ir com ele», assume, sorridente.
Nem precisamos de lhe chamar desporto. Mas pode mesmo mudar vidas.